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Presidente do Uber olha para o futuro, mas o passado ainda incomoda

Ao levar à empresa para a Bolsa, Dara Khorsowshahi tenta provar que companhia tem negócio sustentável, enquanto a figura de seu fundador, Travis Kalanick, ainda incomoda; venda de ações começa nesta sexta, 10

9 mai 2019 - 05h11
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Dara Khorsowshahi tinha um problema. O nome do problema era Travis Kalanick. Até aí, nada de novo. Quando Khosrowshahi assumiu a chefia do Uber, em 2017, tornou-se o faxineiro mais bem pago do Vale do Silício, com um mandato para arrumar a bagunça deixada pelo fundador da empresa. Mas agora o problema voltou.

O Uber está a um dia de sua oferta pública inicial de ações (IPO). Após anos de escândalo, lutas internas e revolta dos usuários, aquele momento supostamente deveria ser um triunfo de US$ 91 bilhões, com os empregados ficando mais ricos e o público podendo adquirir uma parte da empresa que indiscutivelmente estava mudando o mundo. O problema para Khosrowshahi, segundo duas pessoas por dentro do assunto, foi que Kalanick decidiu continuar lá.

Como ex-diretor executivo e ainda membro da diretoria, Kalanick exigiu o direito de participar da tradição da Bolsa de Valores de Nova York de tocar o sino de abertura nesta sexta, 10, dia em que as ações do Uber começam a ser negociadas. Ele quis ainda trazer o pai, Donald Kalanick. Também está perto o segundo aniversário da morte acidental da mãe de Kalanick e do dramático golpe de diretoria que o afastou do comando da empresa. Sua presença no icônico balcão do pregão poderá fazer com que ele pareça estar resistindo a pressões dos adversários.

Khosrowshahi podia bem passar sem isso. O plano original era ocupar o espaço com os empregados e os motoristas mais antigos do Uber. E mais: algumas pessoas no alto escalão veem Kalanick como um passivo tóxico do qual o Uber deve manter a maior distância possível, enquanto tenta convencer a todos de que os empregados agora se inspiram em um novo lema: "Faça a coisa certa. Ponto". O aparecimento do ex-CEO trará inevitavelmente a público memórias do desastre que protagonizou em seu último ano na empresa.

Ao mesmo tempo, Khosrowshahi tem mais com o que se preocupar, além da festa do IPO. O Uber vem perdendo anualmente bilhões de dólares e precisa convencer os investidores de que é uma empresa promissora no longo prazo - mesmo que não venha a dar lucro tão cedo. Quando o New York Times pediu ao Uber que comentasse este artigo, Khosrowshahi decidiu que Kalanick não é bem-vindo, segundo um executivo do Uber.

Khorsowshahi quer provar que a startup evoluiu da ruinosa cultura machista da era Kalanick e de sua estratégia estratégia de buscar o crescimento a qualquer preço. Mas o passado do Uber, para se dizer o óbvio de uma companhia que tem apenas dez anos, não está tão distante. Quase todas as abordagens do capitalismo sem escrúpulos de Kalanick estão por trás da viabilidade do Uber como negócio hoje. (Alegando o necessário silêncio antes da IPO, representantes do Uber, Khosrowshahi e Kalanick não quiseram comentar.)

O Uber tem pouca paciência com consumidores ou com órgãos reguladores de várias jurisdições. E continua perdendo dinheiro ao usar capital de risco para subsidiar corridas, investir em nova áreas e tirar do mercado competidores locais que, em essência, fornecem serviço idêntico.

A pesada aposta de Kalanick em capital de risco pode ser problemática para um Uber público por pelo menos dois motivos. O primeiro é instilar hábitos de indisciplina, pois os executivos simplesmente podem pedir mais fundos sempre que quiserem, como meninos ricos sem freio na mesada.

O segundo, e mais perturbador para investidores individuais, é que o grosso do retorno dos investimentos já pode ter ocorrido. O Uber admitiu recentemente que seu crescimento está mais lento, alimentando preocupações de que grupos de capital de risco, empresas de capital privado, fundos soberanos e outros participantes de elite não tenham deixado muito para os pequenos investidores.

O último grande beneficiário do Uber pode ter sido o SoftBank. O megaconglomerado japonês comprou ações quando elas estavam no nível mais baixo, com a empresa valendo em torno de US$ 42 bilhões. Poucos meses depois, quando o Uber se livrou de uma sucessão de escândalos, essas ações praticamente dobraram de valor.

Paz estabelecida

As IPOs são por natureza imprevisíveis, mas tratando-se do Uber os resultados podem ser especialmente extremos. Será que, como na Amazon antes dele, a tendência vai mudar para lucro? Ou será mais parecido com o que ocorreu com o eBay, um conhecido gigante cujo melhor período de crescimento há muito ficou para trás?

Por agora, a tarefa de Khosrowshahi é fazer uma IPO sem drama. Ele pode utilizar os caóticos eventos da saída de Kalanick para garantir um lucrativo incentivo. Se conseguir manter o valor do Uber acima de US$ 120 milhões por um período de mais de 90 dias (segundo duas pessoas familiarizadas com o assunto e com a linguagem do prospecto de IPO do Uber).

Após cair de paraquedas numa diretoria profundamente fraturada, Khorsowshahi conseguiu estabelecer uma espécie de paz entre os diretores, grupo que inclui Kalanick. Vazamentos de problemas internos pararam de chegar à imprensa. Calúnias entre executivos perderam força. E Khosrowshahi acabou com extravagâncias como contratar Beyoncé para um show interno, como fez Kalanick em 2015, a um custo de US$ 6 milhões.

Admiradores de Khosrowshahi dizem que o clima de calma é resultado de sua longa experiência em lidar com tensões corporativas. Após anos administrando as divisões de fusões, aquisições e finanças da InterActive Corp., Khosrowshahi passou a principal executivo da Expedia em 2012 - uma época de intensos dramas político internos na empresa de viagens online. Khosrowshahi pôs fim ao tumulto, segundo Neha Parick, presidente da Hotwire, que trabalhou com ele na época. "Não importa quem você seja", disse ela, "Dara faz com que você se sinta ouvido" (de maio de 2015 a setembro de 2017, Khosrowshahi participou da diretoria do New York Times).

No Uber, Khosrowshahi contratou uma equipe de juristas para corrigir anos de deficiências legais da empresa. Investidores que tinham apostado bilhões no sucesso do Uber ficaram felizes em ver diminuir o constante fluxo de manchetes negativas.

Plataforma tecnológica

Embora Khosrowshahi aparentemente tenha sido bem-sucedido em atacar muitos dos problemas culturais do Uber, para os céticos os fundamentos comerciais da empresa continuam os mesmos. Em 2018, primeiro ano sob a liderança de Khosrowshahi, o Uber perdeu cerca de US$ 2 bilhões. Isso ocorreu mesmo após a empresa abandonar custosas batalhas com grandes competidores da China, Rússia e Sudeste Asiático.

Khorsowshahi rompeu com a visão de mercado de Kalanick de que "o vencedor leva tudo". Ele abraçou a ideia de que sua empresa é como a Amazon - um gigante logístico em formação. Sua visão é a de que as perdas sustentadas do Uber visam a defender a empresa dos competidores e simultaneamente investir em seu crescimento.

O objetivo é transformar o Uber numa "plataforma tecnológica". O serviço de carro com motorista seria apenas um salto para outros mercados,como aluguel de bicicletas e patinetes, entrega de refeições, transporte por caminhão a longas distâncias - e mesmo carros voadores. "Como a Amazon vende produtos de terceiros, nós vamos oferecer transportes de terceiros", disse Khorsowshahi em entrevista no ano passado.

Após a meta inicial de preço das ações na IPO,entre US$ 48 e US$ 55 cada, o Uber reduziu as expectavivas para US$ 44 a US$ 50, com um valor estimado da empresa entre US$ 80 bilhões e US$ 91 bilhões - significativamente abaixo dos US$ 90 bilhões a US$ 100 bilhõs visados inicialmente.

Apesar de tudo que Khorsowshahi fez para distanciar o Uber de seu fundador, Kalanick continua intimamente conectado à companhia, permanecendo na diretoria. Amigos dizem que ele se sente injustamente atingido pelas críticas a sua administração e toda vez que Khorsowshahi usa a palavra "cultura", ele a entende como uma crítica velada a seu reinado, segundo os amigos.

Mas, não importa onde ele esteja quando as ações do Uber começarem a ser negociadas - no piso da bolsa ou mesmo longe do evento -, Kalanick terá o consolo de ficar com muitos bilhões de dólares.

Já Khorsowshahi "é como Teflon, nada pode riscá-lo", disse a prima Avid Larizadeh Duggan, diretora de operações da Kobalt, uma startup de música. "É isso que faz dele uma boa escolha para a função." / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Estadão
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