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Criação de Autoridade Nacional emperra sanção de lei de dados pessoais

Ponto central da nova regulamentação, autarquia tem papel de definir parâmetros e fiscalizar infrações; surgimento de órgão a partir do Legislativo pode ser inconstitucional

26 jul 2018 - 05h12
(atualizado em 27/7/2018 às 15h23)
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Discutida há quase uma década e considerada vital para proteger as informações pessoais dos brasileiros na internet e fora dela, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (ou PLC 53/2018) aguarda apenas a sanção do presidente Michel Temer para se tornar realidade. No entanto, uma discussão sobre a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), ponto central da nova lei, emperra a decisão final de Temer. O presidente tem até o dia 6 de agosto para se posicionar sobre o texto.

Criada pela nova lei, a Autoridade Nacional é uma autarquia especial, que será vinculada ao Ministério da Justiça e terá a função de fiscalizar o que está previsto na lei, além de aplicar sanções e multas para quem a desrespeitar. Entre especialistas, é consenso de que o órgão, que será formado por membros do governo, sociedade civil, academia e empresas, é imprescindível para que a nova lei "pegue".

O problema é que, para algumas autoridades, a ANPD não poderia ser criada após a sanção da lei porque o projeto tem um "vício de origem". Segundo elas, a criação da autarquia seria inconstitucional porque o Legislativo não pode criar órgãos que gerem despesas para o executivo. Nesse ponto de vista, a criação de um órgão e a abertura de cargos é interpretada como um custo - algo ainda mais complexo em tempos de crise fiscal. Por conta disso, corre em Brasília, segundo apurou o Estado, a ideia de que a Lei de Proteção de Dados não possa ser sancionada integralmente.

Por outro lado, há quem defenda que, na prática, isso não é um problema. Em entrevista ao Estado, o professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Danilo Doneda avalia que a medida não é inconstitucional porque o projeto da Lei Geral de Proteção de Dados veio inicialmente do Poder Executivo - mais especificamente, do Ministério da Justiça - e não cria despesas diretas.

Relator do projeto na Câmara, o deputado Orlando Silva (PC do B-SP) afirmou ao Estado que o prazo para a lei entrar em vigor é de um ano e meio após a sanção. Nesse ínterim, a preocupação com as despesas seria solucionada. "Nós teríamos a oportunidade de fazer uma transição que permita criar o órgão, eliminando eventualmente outras áreas do governo e fazendo ajustes no orçamento de modo que não expanda o gasto público", afirma o deputado.

Veto. Esse debate está dentro da Casa Civil e, a partir dele, a Lei Geral de Proteção de Dados pode ser direcionada a dois caminhos diferentes. O primeiro é o veto da criação da ANPD, uma opção que está sendo amplamente discutida e assusta os ativistas de direito digital. Se a Presidência escolher esse caminho, terá que tomar uma segunda decisão. Uma opção é criar o órgão, tal como estabelecido na lei, a partir de uma medida provisória, para contornar o impasse sobre a inconstitucionalidade.

O presidente Michel Temer também pode decidir atribuir as funções de proteção de dados a órgãos que já existem, como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e a Polícia Federal - segundo ativistas de direito digital, essa opção alteraria bastante a natureza da ANPD, pensada desde o início para conter visões de diferentes setores. Ou então, como última alternativa, a lei pode ser aprovada sem um órgão fiscalizador.

A outra possibilidade é a lei ser sancionada na íntegra. O deputado Orlando Silva está otimista e confia nesta decisão. Ele conversou com lideranças do governo na semana passada, depois que a lei já tinha sido votada no Senado, e sentiu uma preocupação com o tema. "Estou muito convencido, mesmo com o sinal inicial contrário à Autoridade, que, quando eles fizerem o debate, vão perceber a necessidade de ter um órgão regulador próprio", diz. O deputado também pontua o peso que a unanimidade da aprovação do projeto na Câmara e no Senado tem sobre a decisão do presidente Michel Temer.

Na última terça-feira, 24, um órgão que tem peso importante no debate deu uma declaração nesse sentido, pedindo a sanção integral da lei: a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que faz parte do Ministério da Justiça.

Segundo apurou o Estado, a situação dentro da Casa Civil não está resolvida ainda: há um momento de acirramento do debate a partir das opiniões que os ministérios estão enviando à Casa Civil. O presidente Michel Temer deve usar todo o prazo, ou seja, até dia 6 de agosto, para tomar a decisão. "Houve um primeiro momento em que alguns ministérios declararam um posicionamento prévio no sentido do veto, mas mesmos estes estão se mostrando abertos ao diálogo, ouvindo um pouco mais", contou Doneda à reportagem.

Gilberto Kassab, atual ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), por exemplo, afirmou que o endosso ao veto da ANPD ainda está sendo avaliado dentro do Ministério, apesar de a Secretaria de Políticas Digitais do MCTIC ter defendido o veto no início da semana passada.

Vitalidade da lei. A aprovação do projeto sem a ANPD é o medo dos especialistas em proteção de dados. "Sem a autoridade, a gente morre na praia, voltamos praticamente à estaca zero" diz Doneda. "Seria melhor nem ter a lei." Os ativistas reforçam que é uma tendência mundial a lei de proteção de dados ser acompanhada de uma instituição especializada, que conheça profundamente o tema, para garantir a segurança jurídica na aplicação da regulamentação. É o que acontece na União Europeia, por exemplo.

Bruno Bioni, pesquisador da Rede Latino-americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e fundador do Data Privacy Brasil, explica que a existência de uma autoridade faz parte de uma estratégia que existe na hora de criar leis que versam sobre tecnologia -- um cuidado para a lei não ter prazo de validade. "É preciso construir um texto que seja atemporal, imune ao desenvolvimento tecnológico", diz Bioni, "para isso, utiliza-se conceitos abertos no texto, e a autoridade é responsável por calibrá-los e tangibilizá-los ao longo do tempo".

Além disso, existem trechos da lei que dependem diretamente do órgão para serem aplicados. É o caso do artigo 20, por exemplo, que é o direito de auditoria, em que o usuário pode solicitar revisão das decisões que são tomadas a partir do tratamento automatizado de dados pessoais. A responsável pelo trabalho de auditoria é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Há ainda a questão econômica e o papel da ANPD como instância de comunicação entre países para transferência internacional de dados. "Para as nossas empresas poderem receber dados de cidadãos europeus, precisamos desse órgão", afirma Bioni, "isso pode gerar impactos econômicos gigantescos para a economia brasileira".

A ANPD também funcionaria como um agente de transformação cultural, segundo o pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Rafael Zanatta. "Um grupo de pessoas altamente especializado como esse, que cuida da proteção de dados e também seleciona casos estratégicos que chamam a atenção da população, mexe na consciência coletiva", diz Zanatta. Para o pesquisador, essa figura poderia ter inclusive a função de promover políticas educacionais sobre o tema - algo como, por exemplo, já acontece com o Procon na área de direito do consumidor.

O projeto prevê que a ANPD tenha um Conselho Consultivo de composição multissetorial, ou seja, uma mesa composta por atores que representam diferentes partes que serão afetadas pela atuação da autoridade. Eles vão contribuir com a aplicação e fiscalização da lei. Serão 23 assentos formados majoritariamente pela União (40%), sociedade civil organizada (20%), empresas do setor (20%) e membros da academia (20%). "Apesar de não ter decisões aceleradas nos modelos multissetoriais, há um ganho de aprendizagem muito grande", afirma Zanatta. "Isso é muito coerente com toda a história de criação dessa lei: foi um grande processo multissetorial que se mostrou virtuoso justamente por isso."

É principalmente por essas razões que há uma grande mobilização dos ativistas para pressionar a Presidência pela sanção integral do projeto. O debate seguirá quente até o dia 6 de agosto.

*É estagiária, sob supervisão do repórter Bruno Capelas

Estadão
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