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'El Patronato': os reformatórios onde a ditadura Franco internou mulheres para impor valores católicos ultraconservadores

Mariona foi enviada a um reformatório na adolescência por ser considerada rebelde pelos pais. Hoje, um movimento busca reconhecer essas mulheres como vítimas da ditadura franquista.

7 dez 2025 - 21h01
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Mariona jovem em uma foto em preto e branco
Mariona jovem em uma foto em preto e branco
Foto: BBC News Brasil

Aviso - este artigo contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores.

Marina Freixa sempre desconfiou que havia algo obscuro e não dito na própria família.

Sua mãe cresceu sob a ditadura espanhola, que durou décadas e terminou em 1975, mas pouco falava sobre a infância.

Tudo mudou em uma noite de Natal, há dez anos, quando Marina tinha cerca de 20 anos.

Naquela noite de inverno, sentados à mesa, com uma nuvem de fumaça de cigarro pairando no ar e taças de vinho vazias, a mãe de Marina, Mariona Roca Tort, começou a contar.

"Meus pais me denunciaram às autoridades", disse Mariona. "Eles me mandaram para um reformatório quando eu tinha 17 anos."

Esses reformatórios eram instituições que detinham meninas e jovens que se recusavam a seguir os valores católicos do regime franquista: mães solteiras, garotas com namorado, lésbicas. Meninas que haviam sofrido abuso sexual eram presas, como se fossem culpadas pelo próprio abuso. Órfãs e meninas abandonadas também podiam acabar atrás dos muros de um convento.

Marina e as primas ficaram atônitas.

Elas não conseguiam compreender que os avós tivessem decidido internar a própria filha.

Mariona lembra pouco do momento em que contou a história às jovens de sua família e atribui as lacunas ao "tratamento" psiquiátrico imposto no reformatório.

Marina, porém, não esqueceu as revelações. Anos depois, transformou o relato da mãe em documentário.

Mariona é uma sobrevivente do Patronato de Protección a la Mujer (Patronato de Proteção à Mulher, em tradução livre), órgão que, sob a ditadura de Francisco Franco, supervisionou uma rede nacional de instituições residenciais administradas por entidades religiosas. Não há dados precisos sobre quantas instituições participaram nem sobre o número de garotas afetadas.

No dia 20 de novembro completou-se 50 anos da morte de Franco. Desde então, a Espanha avançou nos direitos das mulheres, mas as sobreviventes do Patronato ainda aguardam respostas e agora cobram uma investigação.

Na adolescência, Mariona conheceu pessoas que resistiam à ditadura espanhola
Na adolescência, Mariona conheceu pessoas que resistiam à ditadura espanhola
Foto: Family handout / BBC News Brasil

Mariona, a mais velha de nove irmãos, descreve os pais como direitistas e ultracatólicos. Eles eram tão conservadores que não a deixavam usar calças.

Mas, em 1968, ao completar 16 anos, um mundo novo se abriu para ela.

Mariona dava aulas particulares a crianças durante o dia e, à noite, cursava cursos preparatórios para entrar na universidade.

Foi ali que, segundo conta, conheceu pessoas que nunca tinha visto: sindicalistas, esquerdistas e ativistas antifranquistas. Era o ano dos protestos globais contra o autoritarismo e a guerra do Vietnã, marcados por demandas de direitos civis. O espírito de rebeldia era contagioso.

Franco estava no poder havia três décadas. Os partidos políticos eram proibidos, a censura era ampla e os jovens ansiavam por mudança. Logo, Mariona passou a acompanhar os novos amigos em "incursões": alguns bloqueavam ruas, lançavam coquetéis molotov, distribuíam panfletos e se dispersavam quando a polícia chegava.

Em 1º de maio de 1969, uma amiga de Mariona foi presa em uma manifestação em Barcelona. Havia o risco de que a detida entregasse outros nomes à polícia, e Mariona não pôde voltar para casa caso a procurassem. Naquela noite, dormiu no apartamento de uma colega ativista.

Quando voltou para casa no dia seguinte, Mariona se encontrou em uma situação difícil.

Os pais estavam furiosos e passaram a controlar muito mais sua vida.

"Para eles, foi um escândalo, uma mancha na família", afirma. "Depois disso, não me deixavam sair de casa."

No fim daquele verão, Mariona decidiu ir embora e viajou para Menorca (ilha ao leste da Espanha) com amigas da universidade, deixando um bilhete aos pais.

Eles a denunciaram imediatamente às autoridades como menor fugitiva e, quando Mariona estava prestes a embarcar de volta para Barcelona, foi presa.

A fuga de Mariona de Barcelona em 1969 durou pouco
A fuga de Mariona de Barcelona em 1969 durou pouco
Foto: Alamy / BBC News Brasil

No porto de Barcelona, foi recebida pelos pais.

Eles não a levaram para casa. Em vez disso, a conduziram a um convento. Mariona não recebeu explicação; só lembra da fúria dos pais.

Dias depois, voou para Madri com o pai. Lá, foi levada diretamente a outro convento, parte do sistema do Patronato, ligado ao Ministério da Justiça espanhol.

Ela e as demais internas foram classificadas e separadas em grupos.

Mariona conta que acabou no primeiro andar, reservado às "rebeldes, as consideradas mulheres de má vida".

O Patronato tinha poder para deter qualquer mulher com menos de 25 anos que não se enquadrasse nas normas. Não eram criminosas, mas jovens consideradas necessitadas de "reeducação". Mariona, porém, nunca soube as histórias das outras internas com quem conviveu.

"Não nos deixavam falar. É incrível", diz. "E você se pergunta: como conseguiam?"

As internas só podiam trocar cumprimentos básicos, um mecanismo de controle e uma forma de impedir que as meninas "más" influenciassem as demais.

"O que você não podia era conhecer de verdade outra garota", afirma Mariona. "Porque então nos separavam: mandavam uma de nós para outro dormitório ou até para outra instituição."

As internas só podiam trocar cumprimentos básicos, um mecanismo de controle e uma forma de impedir que as meninas "más" influenciassem as demais.

"O que você não podia era conhecer de verdade outra garota", afirma Mariona. "Porque então nos separavam: mandavam uma de nós para outro dormitório ou até para outra instituição."

Ela estima que havia cerca de cem internas no convento. Dormiam vinte internas por quarto, com uma freira na extremidade e a porta trancada com chave.

A rotina diária era exaustiva: orações, missa, limpeza do convento e, depois, horas em um ateliê costurando roupas para comerciantes locais. Enquanto as meninas costuravam, uma freira lia em voz alta para impedir qualquer conversa.

"Havia doutrinação", lembra Mariona. "Para que você entendesse que tinha se comportado muito mal. E, quando percebesse isso, pediria perdão e se confessaria."

Mariona nunca se confessou.

No diário, Mariona escreveu: "Meu pai diz que devo escolher entre ter uma vida em família ou sair de casa para sempre"
No diário, Mariona escreveu: "Meu pai diz que devo escolher entre ter uma vida em família ou sair de casa para sempre"
Foto: Marina Freixa / BBC News Brasil

Depois de cerca de quatro meses, permitiram que ela voltasse a Barcelona para o Natal, mas não podia sair sozinha.

Mariona não lembra como, mas de alguma forma conseguiu fugir. A liberdade, no entanto, durou pouco. Em poucas horas, foi colocada à força em um carro com o pai e um tio e levada de volta a Madri.

"Chegamos ao convento ao anoitecer", lembra. "Eu me recusei a entrar. Me arrastaram escada acima e me sedaram para que entrasse."

Dentro do convento, advertiram as outras jovens para que não falassem com ela, a garota rebelde que tinha ousado fugir. Sentiu-se muito sozinha e, por fim, começou a recusar comida.

A perda drástica de peso levou à internação em uma clínica psiquiátrica. Ali, diz ter recebido duas sessões de eletrochoque, seguidas do que chamavam de "terapia de coma insulínico".

Mariona afirma que recebia injeções de insulina para induzir uma hipoglicemia profunda, um estado semelhante ao coma causado por baixo nível de açúcar no sangue. Acreditava-se que isso poderia reduzir sintomas psicóticos ou esquizofrênicos e, de algum modo, "reiniciar" o cérebro do paciente.

Era uma "terapia" que já deixava de ser usada em muitos países por um motivo simples: podia ser fatal.

Mariona recebia uma injeção de insulina pela manhã. Depois, era tirada do coma e obrigada a comer. Começou a se deteriorar mentalmente.

"Ficava mais confusa a cada dia. Passei a dizer coisas como: 'Causei sofrimento aos meus pais'", conta.

"Entrei num processo de submissão e aceitação."

Ela acredita que o "tratamento" intravenoso forçado com insulina danificou sua memória de forma irreversível.

Com a suspeita de que aquilo estava causando lapsos, começou a escrever um diário. Mais de cinco décadas depois, o caderno de 1971, já amarelado, serviria de base para o documentário feito por Marina sobre a experiência da mãe.

Os médicos acreditavam que o "tratamento" ajudaria Mariona a ganhar peso, mas isso não acontecia. Um dia, o psiquiatra decidiu que seria melhor amarrá-la à cama até que comesse.

O desespero de Mariona se tornou tão intenso que, segundo conta, pensou em tirar a própria vida. O psiquiatra então fixou uma meta de 40 kg. Se atingisse esse peso, prometeram que teria alta da clínica.

Quando Mariona saiu do Patronato, nunca mais voltou a viver com os pais
Quando Mariona saiu do Patronato, nunca mais voltou a viver com os pais
Foto: Mariona Roca Tort / BBC News Brasil

Mariona conseguiu. Em 1972, depois de recuperar um pouco as forças, voltou a Barcelona.

Aos 20 anos, Mariona prometeu que não voltaria a viver com os pais.

Eram os últimos anos da ditadura de Franco, que terminaria com sua morte, em 1975.

Mariona passou por vários empregos até construir uma carreira como diretora de TV. Teve filhos, mas a relação com os pais permaneceu distante.

Em algum momento, Mariona perguntou à mãe por que haviam mandado ela para o Patronato. A resposta foi apenas: "Nos equivocamos."

O pai de Mariona tem hoje mais de 90 anos.

"Nós também sofremos muito", disse ele quando a filha perguntou sobre a decisão da família de interná-la em Madri.

Para Marina, conhecer a história da mãe tornou a relação com o avô mais difícil.

"Não posso me obrigar a gostar de alguém que causou tanta dor, que tratou tão mal minha mãe."

O curta documental que Marina produziu sobre a experiência da mãe no Patronato se chama Els Buits — que em catalão significa "os vazios" —, referência às lacunas na memória de Mariona. O filme ganhou prêmios na Espanha e foi indicado a um Prêmio Goya.

Cinquenta anos após a morte de Franco, o filme ajudou a impulsionar a reivindicação por reconhecimento legal das mulheres internadas como vítimas da ditadura espanhola.

O ministro da Memória Democrática, Ángel Víctor Torres, afirmou que o governo está disposto a analisar o caso das sobreviventes do Patronato.

Enquanto isso, Marina e Mariona percorrem cidades exibindo o filme em sessões comunitárias.

"As mulheres vêm e contam suas histórias; é como se uma porta para o desconhecido se abrisse, e isso é muito poderoso", diz Marina. "Muita gente pensa que o que aconteceu em sua própria casa foi um caso isolado. Nós tentamos mostrar que essa história não é individual, foi sistemática."

A mãe de Marina, Mariona, ainda duvida às vezes de sua memória.

Mas, acrescenta, "ver tudo refletido no filme dá um peso de verdade à história".

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