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"Decisão do Facebook vai marcar muito a agenda política"

Para pesquisador, empresa apresenta hoje posição favorável ao controle das expressões em redes sociais

9 mai 2021 - 09h19
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Em sua primeira grande deliberação, o conselho independente do Facebook votou a favor de manter o ex-presidente americano Donald Trump fora de suas duas principais plataformas, Facebook e Instagram, ao menos temporariamente. A decisão, anunciada nesta quarta-feira, 5, deve ter consequências profundas nas discussões sobre controle e mediação de usuários de redes sociais, afirma o pesquisador e professor da ESPM Luiz Peres Neto. "Não podemos esquecer que o Facebook é uma empresa privada, uma das maiores, e que hoje apresenta uma posição favorável ao controle das expressões", afirma.

Donald Trump, ex-presidente dos EUA. Washington, EUA. 09/09/2020. REUTERS/Jonathan Ernst
Donald Trump, ex-presidente dos EUA. Washington, EUA. 09/09/2020. REUTERS/Jonathan Ernst
Foto: Reuters

Para ele, há claramente um choque entre dois entendimentos: de um lado, a defesa de que a liberdade de expressão deve ser irrestrita, o que chama de "paradigma americano"; do outro, a visão europeia de que a liberdade de expressão precisa respeitar os limites do Estado democrático de Direito. "Entender o contexto no qual essa decisão está sendo tomada é fundamental para pensar no futuro das nossas liberdades nas mídias sociais", diz. Confira a entrevista:

A decisão de hoje vai forçar, de certa forma, uma definição de tempo para o banimento das contas de Donald Trump no Facebook e no Instagram. Isso é uma vitória ou uma derrota para ele?

Qualquer que seja o resultado, todos saímos perdendo. Não só os envolvidos, a plataforma, o próprio Trump, mas os usuários. Existem dois modelos em choque: de um lado, a ideia de que a liberdade de expressão não deve ter limites, o paradigma americano da 1a emenda. Por outro, você tem uma visão mais continental, europeia, que entende que a liberdade de expressão precisa ter limites dentro do Estado democrático de Direito. Entender o contexto no qual essa decisão está sendo tomada é fundamental para pensar no futuro das nossas liberdades nas mídias sociais.

Essa decisão vai marcar muito a agenda política de controle e mediação dos usuários. Não podemos esquecer que o Facebook é uma empresa privada, uma das maiores, e que hoje apresenta uma posição favorável ao controle das expressões. É verdade, Trump tem acesso a outros recursos, outros canais, mas e um jornalista, e um professor? Nós não temos a capacidade de recorrer às instâncias para salvaguardar nosso direito caso sejamos vítimas de um erro, ou de uma denúncia.

A decisão de banimento é muito interessante porque também é a primeira decisão de grande envergadura desse comitê, e é o que vai legitimar ou não esse comitê como uma espécie de legislador. Se eles pesarem muito a mão, vão de alguma maneira sair perdendo com as pessoas, não só com os seguidores de Trump, mas com pesquisadores, professores, jornalistas, toda uma corrente que entende a liberdade de expressão como valor fundamental para a democracia. E se não pesarem muito a mão, foram brandos e dosarem essa punição, ficarão mal com a corrente filosófica, com pesquisadores, professores que seguem a visão continental de que a cidadania vem na frente de qualquer coisa, e que a liberdade de expressão deve ser limitada em uma lógica de peso e contrapeso.

O que essa decisão diz sobre o próprio Conselho, considerando que há temores sobre sua independência, uma vez que é financiado pelo próprio Facebook?

O comitê é uma tentativa desesperada do Facebook de se legitimar. Precisamos entender o que são as plataformas hoje e quais papéis elas desempenham nas nossas vidas. São espaços públicos ou privados? Ficamos na definição de que é um espaço semi-público...seja como for, é uma tentativa desesperada do Facebook de se legitimar como "somos uma empresa privada sim, somos uma das grandes big techs, mas não somos os malvados dos direitos fundamentais. Nos preocupamos com a neutralidade de rede, liberdade de expressão e outros valores, tanto que criamos esses comitês, com pessoas respeitadas no campo de políticas de comunicação digital, que estão colocando suas reputações em jogo para legitimar o comitê".

Mas todas as regras do Comitê são decisivas para a legitimidade do próprio. Então quem decide quem são essas pessoas? Não são os usuários. Para além da questão financeira, que evidentemente compromete muito a idoneidade e a independência, mais a independência do que a idoneidade, do Comitê, há também a questão da própria estrutura de funcionamento e constituição do Comitê. Por que o Facebook, ao invés de apoiar um comitê fundado por ele mesmo, não apoia políticas de regulamentação? A ideia é "antes de fazerem regulamentação, que eu faça a minha". É isso, o Facebook está criando o CONAR deles.

Um possível sucesso do Conselho pode estimular a criação de outros em outras plataformas? E talvez até estimular a regulamentação dessas empresas de formas mais tradicionais, via congressos e parlamentos?

Eu duvido. Todo o esforço que foi feito de construção de políticas públicas e de regulamentação do espaço da internet foi titânico. O Brasil foi líder mundial nesse terreno, com o marco civil da internet, que serviria como inspiração para que outros países adotassem legislações similares. Isso efetivamente aconteceu -- a Itália aprovou uma espécie de marco civil e nomeadamente mencionou o brasileiro como inspiração. A iniciativa legislativa existia, a despeito de toda dificuldade e do lobby feito por empresas de telefonia, provedores de internet, stakeholders...o caminho era esse. E isso não foi para a frente, entre outras coisas, por movimento de agentes do mercado como o Facebook. Me parece claro que o que eles querem é essa estratégia CONAR: antes que alguém me regule, me regulo eu, porque aí posso ter mais liberdade.

Como essa decisão afeta os usuários do Facebook?

De uma maneira até prosaica. Vou ilustrar: um colega meu, professor, compartilhou uma foto de uma estátua da Vênus de Milo. Era uma peça de videoarte de um artista que inseria fotografias diferentes em cima da obra. Mas dentro da política de termos do Facebook, a nudez feminina é considerada pornografia.

Isso afeta qualquer usuário. Um microempresário que tem uma fanpage, usa o Instagram, pode ser banido porque compartilhou alguma coisa que alguém denunciou. O comitê não mudou o fundamento do Instagram, do Facebook: a política de privacidade e uso está baseada em denúncias. Se alguém denuncia, a rede derruba -- primeiro derruba e depois verifica. Mesmo que o algoritmo tenha melhorado, em termos de liberdade de expressão,a s nuances são muito grandes. A questão não é permitir ou não, é quem vai controlar o censor. O Facebook estabelece limites, mas quem controla, quem legisla sobre esses limites? Os danos, quando entramos em terreno político ou comercial, são irreparáveis. Às vezes, é uma eleição que você perde. E toda ação é posterior: no caso de Trump, depois que ele incitou os manifestantes rumo ao Capitólio, qualquer função que seja posta agora será banal perto do que ele foi capaz de fazer naquele momento.

Quais consequências essa decisão pode ter em eleições futuras?

Pelo Comitê, pouco, pelo Facebook, muito. O Facebook e o Twitter fizeram um movimento muito claro, começando a etiquetar todas as publicações do Trump questionando os resultados eleitorais, e ali houve uma mensagem muito clara. Isso é de se elogiar, o Facebook fez um esforço tremendo para evitar os erros de 2016, quando não estavam preparados ou houve certo interesse em deixar que as coisas corressem para um certo favorecimento do Trump. Com Comitê, o Facebook diz "estamos moralizando", é como um juiz de futebol querendo ganhar o respeito dos jogadores.

E em eleições de menor visibilidade, como municipais e estaduais?

Alguma coisa terá que ser feita. No âmbito nacional, não acredito tanto no Facebook, acredito mais na Justiça Eleitoral. Ela aprendeu muito, no caso do Brasil, com as eleições de 2018. O que o 'gabinete do ódio' fez foi de uma capacidade de articulação, implementação dessas redes de mentiras que a própria Justiça Eleitoral não estava capacitada nem técnica, nem jurídica, nem politicamente para evitar. Acredito que a resposta pode ser dada com maior eficácia por parte das instituições, ainda que de maneira limitada, parcial, do que por uma empresa como o Facebook. Porque há um elemento de visibilidade importante. Vão atuar, mas com a mesma celeridade? Se for em Maringá, Botucatu ou Los Angeles?

Algo mudou nas redes nesses meses sem Trump?

Eu acho que tem a questão da ressaca eleitoral. Biden acaba de completar 100 dias. Agora, vamos ver. Tem uma coisa interessante que veio para ficar, que foi esse movimento das redes de etiquetar publicações. O que é discutível, um jornalista pode publicar uma informação de bastidores e isso é completamente diferente de eu publicar uma opinião, mas o fato das duas publicações terem a mesma etiqueta coloca as mesmas no mesmo patamar, o que não são. É verdade que o Twitter está mais tranquilo sem o Trump, mas acho que tem esse movimento de ressaca, tem essa tendência de etiquetação e tem a pandemia.

A nova 'rede social' de Trump (From the Desk of Donald J. Trump) pode funcionar?

Trump tem uma movimentação muito de bolha, de nicho, e as ações dele repercutiam muito na medida em que ele era presidente dos EUA. Ele deixou de ser, portanto, perdeu o papel institucional. É curioso porque dá-se um paradoxo: ele pisoteou a instituição que representava, e era justamente essa instituição que fazia com que os discursos dele fossem visíveis com todo o alcance e repercussão que ele tinha. Na medida em que ele deixa a instituição, entra numa espiral de insignificância, volta mais para a bolha dele. É interessante porque certamente é algo que poderia acontecer com Bolsonaro, se ele perdesse as próximas eleições.

A exclusão de Trump e de extremistas, como os que invadiram o Capitólio, e sua consequente migração para redes mais livres e bem menos vigiadas, como Parler e Gab, pode criar um risco de mais extremismo, de um extremismo mais perigoso, por estar fora de vista?

É uma boa pergunta. Eu arriscaria responder que já há um extremismo tão manifesto, não só no Brasil, mas nas dinâmicas de interações em redes sociais, que eu não veria essa correlação. Por outro lado, uma tendência que tenho visto nas minhas pesquisas, é uma tendência de uma entropia entre grupos, países. Eu diria que num futuro esse caráter transnacional das redes sociais tenderia a se enfraquecer na medida em que esse movimento e outros se acentuarem. Como são grupos de milícias digitais, bolhas, que vão migrando para determinadas redes, também vão se tornando mais localizadas, menos visíveis, menos transnacionais, mais dentro do cercadinho. Isso vem acompanhado de uma tendência de construção das plataformas. Plataformas são cercadinhos. A Índia, um dos países mais populosos do mundo, está no processo de criação de uma plataforma nova, mais ou menos nos moldes da chinesa. Ali você limita, fomenta que as pessoas falem entre si em um determinado território ou grupo. Uma espécie de 'orkutização'. São tendências, projeções de uma certa entropia.

Estadão
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