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Ásia

Indiana que sobreviveu a estupro coletivo enfrenta ameaças ao ajudar vítimas de abuso sexual

Sunitha Krishnan já ajudou, por meio de organização, 18,5 mil pessoas abusadas; na última semana, novos casos de violência sexual abalaram o país asiático.

9 mai 2018 - 06h59
(atualizado às 08h52)
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'Meu estupro foi a primeira pedra do edifício', diz indiana
'Meu estupro foi a primeira pedra do edifício', diz indiana
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Sunitha Krishnan tinha 15 anos quando aprendeu que na Índia a violência sexual não é apenas fruto de impulsos não controlados. Estuprada por oito conhecidos, ela entendeu que o crime também responde às necessidades de uma sociedade conservadora e patriarcal que busca manter seu poder intacto.

"Fui estuprada como lição. O motivo foi vingança", sentencia essa pequena mulher de 46 anos, que na época já militava por direitos sociais no vilarejo onde nasceu, na região de Bangalore.

"Meus estupradores eram homens que achavam que tinham que me dar uma lição porque eu estava fazendo algo no vilarejo para mudar as mentalidades. Questionar, despertar as pessoas para que pensem diferente. Isso não é aceitável para esses homens."

Ativismo

Krishnan fala com a autoridade de uma sobrevivente, mas também de quem já ajudou mais de 18,5 mil vítimas de exploração e violência sexual com sua organização não governamental Prajwala (Chama Eterna, em sânscrito), fundada em 1996.

O trabalho, iniciado com ajuda do missionário católico José Vetticatil, já falecido, rendeu à ativista vários reconhecimentos internacionais e a indicação como finalista ao Prêmio Aurora pelo Despertar Humanitário deste ano, que será entregue no próximo 10 de julho, em Erevan (Armênia).

"Meu estupro foi a primeira pedra do edifício. Acho que aquele foi meu primeiro momento de transformação, porque pela primeira vez eu entendi o que é a rejeição", afirma a ativista, hoje pós graduada em trabalho social psiquiátrico.

Ela prefere não falar sobre como ocorreu o ataque, apesar dos detalhes ainda voltarem em forma de flashbacks e sonhos quase 30 anos mais tarde. Do episódio, o que mais a marcou "não foi o estupro em si, mas o estigma, a vergonha, o ostracismo" ao que foi condenada pela própria família e comunidade, assegura.

"Fui culpada pelo que aconteceu comigo. Eu era motivo de vergonha para minha família, era vista como uma prostituta pela comunidade. O impacto dessa injustiça despertou uma raiva dentro de mim que só cresceu. Aquilo me fez entender como as pessoas tratam as vítimas de crimes sexuais: como um criminoso, apesar de você não ter nenhuma culpa", contou à BBC Brasil por telefone.

Estigma

Prajwala nasceu da vontade de combater essa estigmatização, comum na Índia entre as vítimas de estupro e mais forte entre as pessoas forçadas a trabalhos sexuais, pessoas que "são estupradas inúmeras vezes durante sua vida".

"Vítimas de exploração sexual sofrem uma vida inteira de dor. São traumatizadas, estigmatizadas por toda uma vida, e isso continua de geração a geração. Se você é filho de uma escrava sexual, espera-se que você também seja um escravo sexual", explica a fundadora da ONG.

Para mudar essa realidade, o primeiro passo de Krishnan foi abrir uma pequena escola para cinco crianças, filhos de prostitutas de um bordel fechado pelas autoridades de Hyderabad, a 570 quilômetros de Bangalore.

"As prostitutas ficaram sem teto e sem opção. Queríamos evitar que os filhos delas se vissem obrigados a se prostituir também por necessidade", lembra.

Hoje a ONG conta com 17 escolas desse tipo, além de um centro de formação profissional onde as vítimas de exploração sexual podem desenvolver uma atividade econômica.

Prajwala também administra três centros de crise em delegacias de polícia e um abrigo para mulheres vítimas de tráfico sexual e seus filhos, a maioria contaminados com HIV.

Entre os casos mais chocantes, Krishnan recorda o de uma criança de 2 anos estuprada por um vizinho em 2017.

Poder e dominação

A especialista afirma que não há origem, idade ou nível de educação predominantes entre os estupradores indianos. No entanto, o perfil psicológico segue dois padrões.

"São homens profundamente inseguros a seu próprio respeito, que precisam validar seu poder. Na nossa sociedade patriarcal, as mulheres são estereotipadas, usadas como objeto para satisfazer os homens. E há essa necessidade (de certos homens) de dominar. É aí que o problema começa", analisa.

Krishnan também identifica entre os criminosos "homens guiados por uma noção equivocada de sexo e sexualidade".

"Há, por exemplo, muitos adolescentes que veem material pornográfico e buscam, com o estupro, viver as mesmas cenas. Estupro é uma questão de poder e dominação. Mas não posso deixar de ver também um desvio psicológico em quem estupra."

'Problema global'

Na última semana, novos casos de violência sexual abalaram a Índia e ganharam as manchetes dos principais jornais mundiais.

Duas jovens de 16 e 17 anos foram estupradas e queimadas vivas em episódios diferentes ocorridos na mesma região do estado de Jharkhand, ao leste do país. A mais jovem faleceu e a outra está internada em estado grave.

Poucas semanas antes, milhares de pessoas haviam saído às ruas para protestar contra a prisão de oito suspeitos - entre eles quatro policiais - de participar do sequestro, estupro e assassinato de uma menina de oito anos no norte do país.

Segundo a acusação, os criminosos, todos hindus, planejaram o crime para afastar da região uma comunidade nômade muçulmana conhecida como Bakarwals, da qual a vítima fazia parte.

O crime, ocorrido em janeiro, levou o governo a instaurar, no mês passado, a pena de morte para casos de esturpo de menores de 12 anos.

Em 2016 as autoridades indianas registraram 40 mil estupros em todo o país, mas ativistas acreditam que a cifra real seja muito superior. A maioria das vítimas não denuncia os agressores por medo ou pressão da sociedade.

Apesar das notícias, Krishnan insiste que a violência sexual não é um problema exclusivo, nem predominante, da Índia.

"Pode parecer que há mais casos porque a população é maior na Índia, mas o estupro é um problema global. Também existe na Europa, nos Estados Unidos. O problema real aqui é o recrudescimento da violência nos casos de estupro. Por isso se fala mais da Índia", ela acredita.

A própria ativista é alvo de ameaças de morte por parte des redes de tráficos de mulheres e já foi vítima de várias agressões, uma das quais lhe causou danos permanentes na audição.

Mudanças

Apesar de tudo, a especialista acredita que a sociedade indiana está mudando a maneira de encarar a violência sexual desde 2012, quando o país inteiro protestou pela morte de uma estudante de 23 anos em consequência de um violento estupro coletivo dentro de um ônibus.

"O mundo agora está do lado das vítimas. Há muitas situações que provocam manifestações de apoio. Mais pessoas estão denunciando e o governo endureceu as penas para estupradores. Por isso os criminosos sentem essa necessidade de usar violência, para impedir as vítimas de denunciar."

Por outro lado, os homens indianos passaram a se envolver na luta contra a violência sexual.

"Há cada vez mais homens ativos na luta contra a violência de gênero. Os homens indianos estão começando a entender que são parte do problema e agora que fazer parte da solução", confia Krishnan.

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