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América Latina

Censura de livros dispara nos EUA em meio à 'guerra cultural' de apoiadores de Trump

Desde 2021, as proibições de livros aumentaram nos Estados Unidos. A censura é reflexo da "guerra cultural" travada pelo movimento MAGA (Make America Great Again) e respaldada pela legislação.

24 dez 2025 - 15h39
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Jean-Baptiste Breen, da RFI

Censura de livros dispara nos EUA em meio à 'guerra cultural' de apoiadores de Trump.
Censura de livros dispara nos EUA em meio à 'guerra cultural' de apoiadores de Trump.
Foto: Getty Images via AFP - KEVIN DIETSCH / RFI

"Isso não Pode Acontecer Aqui", "O Conto da Aia", "1984": desde seu primeiro mandato, em 2017, o presidente americano, Donald Trump, tem sido alvo de comparações com grandes romances distópicos do século XX. Oito anos depois, a maioria dos títulos está entre os livros mais censurados pelos estados conservadores do país - situação sem precedentes na história americana.

A PEN America, uma ONG que defende a liberdade de expressão por meio da literatura, registrou 22.810 proibições de livros em escolas desde 2021. Muitos paralelos foram traçados entre essa situação e a realidade alternativa de "Fahrenheit 451" - que também foi censurado diversas vezes. No romance de Ray Bradbury, toda leitura é proibida e "bombeiros" são encarregados de queimar todos os livros que encontram.

Os Estados Unidos da atualidade, não ordenaram a queima de livros, mas cada vez mais bibliotecas são vítimas de proibições. Elas estão na linha de frente da "guerra cultural" dos apoiadores de Donald Trump, da qual a censura de livros é um reflexo.

Censura sem precedentes

Os números falam por si. Em 2020, 277 livros foram contestados ou tiveram pedidos de remoção feitos para bibliotecas escolares ou universitárias, de acordo com a Associação Americana de Bibliotecas. Em novembro daquele mesmo ano, Donald Trump foi derrotado na eleição presidencial e entregou a Casa Branca a Joe Biden.

No primeiro ano de mandato do 46º presidente dos Estados Unidos, houve um aumento expressivo nas contestações de livros: quase 4.000 foram registradas em todo o país. Destas, 2.500 foram bem-sucedidas, levando à remoção de 1.648 títulos. Os números só aumentaram nos anos seguintes, chegando a 10.046 proibições no ano letivo de 2023-2024, de acordo com a PEN America.

A "guerra cultural" declarada contra o "wokismo" pelos conservadores alinhados a Trump funciona como o motor da censura. Os temas mais visados pelas proibições de livros refletem os principais gritos de guerra do movimento MAGA.

Batalha conservadora

"Os livros mais visados geralmente abordam a história americana, em especial aqueles relacionados à escravidão e à história de populações racializadas nos Estados Unidos", observa Marine Paquereau, professora de literatura americana na Universidade da Borgonha, na Europa. "O feminismo, questões de sexualidade, incluindo literatura juvenil, romance sombrio ou mesmo obras mais acadêmicas voltadas para adolescentes que questionam seus corpos e sexualidade, além de questões LGBTQIA+", também entram na lista, segundo a pesquisadora.

Entre os 1.091 livros mais banidos durante o ano letivo de 2023-2024, 57% continham temas relacionados a sexo, 44% tinham personagens ou pessoas negras, indígenas ou mestiças, e 39% falavam de personagens ou pessoas LGBTQIA+, de acordo com a PEN America.

Todos esses são temas que Donald Trump associou à chamada ideologia "woke", que ele retratou como inimiga do Estado, como quando denunciou a "revolução cultural de esquerda" em junho de 2020, diante do Monte Rushmore. Essa retórica, disseminada pouco a pouco nos círculos republicanos, reapareceu um ano depois, em um memorando do Comitê de Estudos Republicanos (RSC, na sigla em inglês), um grupo conservador na Câmara dos Representantes, entre outros exemplos. "Estamos em uma guerra cultural", escreveu o presidente do grupo, Jim Banks, na época.

O memorando acusa a "teoria crítica da raça" - um campo de pesquisa que analisa o racismo estrutural nas instituições - de ensinar "essencialismo racial" aos jovens americanos. Ele se baseia em uma pesquisa realizada pela organização de lobby conservadora Heritage Action para afirmar que apenas "16% [dos pais americanos] querem que a teoria crítica da raça seja ensinada a seus filhos".

O texto conclui: "Estamos começando a ver um movimento espontâneo de pais em todo o país […] fartos dos ensinamentos que estão sendo dados a seus filhos. Como conservadores na Câmara, devemos enviar uma mensagem clara a esses pais preocupados: estamos do seu lado".

Guerras locais

Nos Estados Unidos, a importância de um partido manter o fervor de sua base na primeira metade de um mandato presidencial, antes das eleições de meio de mandato, não pode ser subestimada. Independentemente da intenção política deste memorando, a mensagem transmitida demonstra o envolvimento significativo de organizações locais nas escolas americanas. Essa mobilização se cristalizou em torno da questão dos livros.

Um grupo em particular, o Mom's for Liberty (Mães pela liberdade), que surgiu em 2021, abraçou essa luta. Uma de suas fundadoras, Tiffany Justice, disse ao Le Monde em novembro de 2023 que o país estava passando por "uma revolução cultural" que levaria ao "desmantelamento da família, da fé e da liberdade".

A organização passou a mirar as eleições das associações de pais e professores para os conselhos escolares. Em 2022, 55% dos 500 candidatos apresentados pelo Mom's Liberty em todo o país foram eleitos, de acordo com a Fundação Jean Jaurès. Ocupar esses cargos proporciona uma plataforma privilegiada para contestar livros considerados perigosos para os alunos americanos.

Com mais de 130.000 membros atualmente, a organização tem sido ativamente cortejada por diversos candidatos republicanos nas eleições presidenciais de 2024, mas está longe de ser a única a se mobilizar contra todo um segmento da literatura anteriormente acessível aos estudantes. US Parents Involved in Education, No Left Turn in Education, MassResistance e Mary in the Library são todas defensoras das campanhas de censura em massa implementadas desde 2021.

"Não surpreende que a Mom's Liberty tenha nascido na Flórida, um dos estados com as leis de censura de livros mais rigorosas", observa Marine Paquereau. De fato, a Flórida está na vanguarda dessa guerra contra a literatura considerada "woke". Ms por mais bem organizadas que sejam, associações como a Mom's Liberty não teriam sido tão eficazes sem um arcabouço legislativo particularmente favorável.

"Stop W.O.K.E." 

Utilizada a serviço da "guerra cultural", a legislação de alguns estados governados por republicanos foi alterada desde 2021. O Texas adotou a Lei de Restrição de Recursos Educacionais Explícitos e Designados para Adultos (READER, na sigla em inglês) em 2023. O texto visa - como o próprio nome sugere - recursos educacionais considerados como "descritivos ou que representam práticas sexuais de maneira manifestamente ofensiva". As bibliotecas escolares são incentivadas a se adaptarem, em conformidade com a legislação.

No total, a PEN America contabiliza 13 estados, incluindo uma esmagadora maioria daqueles que apoiaram Donald Trump na eleição de 2020, que adotaram legislação que facilita a remoção de livros das bibliotecas escolares. Mas nenhum deles foi tão prolífico quanto a Flórida.

Governado pelo republicano convicto Ron DeSantis, o Estado da Flórida aprovou quatro leis nesse sentido, três delas somente em 2022. O texto, chamado "Stop the Wrongs to Our Kids and Employees" (W.O.K.E. Act), proíbe escolas e universidades de oferecerem cursos que promovam certos conceitos, incluindo a ideia de que uma pessoa pode ser "inerentemente racista, sexista ou opressora, consciente ou inconscientemente, por causa de sua raça, cor, origem nacional ou sexo". Ron DeSantis não esconde o fato de que essa lei visa especificamente a teoria crítica da raça.

Aprovada alguns meses depois, a lei "Parental Rights in Education" (Direitos dos Pais na Educação), apelidada de "Don't Say Gay" (Não Diga Gay) por seus detratores, aborda a representação de perspectivas LGBTQIA+ nas escolas. "As instruções em sala de aula […] sobre orientação sexual ou identidade de gênero" são proibidas até a terceira série (quarto ano do ensino fundamental no Brasil), "nem podem ser ser ministradas de maneira inadequada à idade ou ao nível de desenvolvimento dos alunos."

A redação vaga da lei é confusa. As "instruções" poderiam significar "a remoção de livros com personagens LGBTQ ou figuras históricas", como aponta o New York Times. Tudo é uma questão de interpretação. O mesmo se aplica à segunda parte da frase, que poderia potencialmente estender a proibição a séries superiores ao terceiro ano.

"Devido à falta de diretrizes claras, essas leis levaram professores, bibliotecários e administradores escolares a removerem livros das prateleiras antecipadamente, mesmo na ausência de contestações específicas", observa a PEN America.

Além disso, elas fornecem argumentos legais adicionais quando associações de pais e professores solicitam a remoção de certos livros das escolas. "É uma recusa absoluta ao debate e à contradição, com a figura do 'wokista' sendo evocada como um espantalho", analisa Marine Paquereau.

RFI A RFI é uma rádio francesa e agência de notícias que transmite para o mundo todo em francês e em outros 15 idiomas.
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