'Aceitei um emprego por impulso num réveillon e acabei presa no mar por 6 meses'
O que você faria se ficasse preso em um navio, longe dos seus entes queridos, e não tivesse a menor ideia de quando poderia voltar? A BBC acompanha a história de uma jovem e como sua vida tomou um rumo totalmente inesperado.
Véspera de Ano Novo em 2019. Giulia Baccosi estava em uma festa com seus amigos, quando apareceu uma mensagem no celular.
A jovem de 31 anos tinha aceitado recentemente um novo emprego na Sicília (Itália), mas estava em dúvida sobre se era a decisão correta.
"Meu coração me dizia que talvez eu devesse reconsiderar", conta ela ao podcast Lives Less Ordinary, da BBC. . "Olhei para o céu e pedi um sinal para o Universo, me dizendo se estava no caminho certo."
A mensagem no celular de Baccosi veio de uma amiga, dizendo que um navio cargueiro transportando rum e azeite de oliva estava prestes a zarpar da Europa para a América Central — e precisava de um cozinheiro.
Baccosi já havia trabalhado como cozinheira em um navio e resolveu aceitar este novo emprego, em vez de ir para a Sicília.
"Vou com você até o México", contou ela ao telefone para o dono do navio, "e, depois, saio."
A previsão era de que este trecho da viagem levaria cerca de três meses. E, em seguida, Giulia Baccosi pretendia retornar para sua vida na Itália.
Mas não é assim que as coisas funcionam.
No início de janeiro, a Avontuur, a escuna de 100 anos de idade, deixava a Alemanha e se dirigia às áreas agitadas do mar do Norte.
Giulia Baccosi tinha que cozinhar três refeições por dia para a tripulação faminta e gerenciar os suprimentos.
A primeira escala foi Santa Cruz de Tenerife, nas ilhas Canárias. A tripulação pôde ouvir os tambores distantes do enorme carnaval da cidade.
Depois de 36 dias no mar, todos estavam ansiosos para se divertir. E, ao descer no porto, a tripulação se viu rodeada de foliões com roupas deslumbrantes.
"Nós nos perguntávamos: 'O que faremos? Vamos participar da festa!'", relembra ela.
Na manhã seguinte, em meio a uma leve ressaca, circulou um boato sobre visitantes na ilha que ficaram doentes devido a um vírus misterioso e tinham sido colocados de quarentena no seu hotel. Mas a tripulação logo esqueceu o incidente, enquanto se preparava para seguir viagem.
Certa manhã, pouco tempo depois, Baccosi estava cortando frutas e fazendo um mingau, quando o vigia noturno comentou com ela sobre uma pequena luz incomum identificada no horizonte.
O Avontuur estava a 45 milhas náuticas (83 km) do litoral da ilha Gran Canária e a luz estava longe demais para ser um barco de pesca. De repente se ouviram gritos de comando, as velas eram baixadas e o motor, usado apenas em emergências, era ligado.
"O que está acontecendo?", perguntou a jovem. "É realmente o que eu acho que seja?
Quando a luz se aproximou, ela viu um pequeno barco de pesca de madeira, com 11 homens e cinco mulheres a bordo, lotando a embarcação de tal forma que eles mal conseguiam ficar de pé.
"Eles estavam acenando", conta Baccosi, "e podíamos ouvi-los gritando à distância."
À medida que o Avontuur se aproximava, as pessoas a bordo do minúsculo barco ficavam cada vez mais angustiadas.
"Todos eles queriam ser os primeiros a sair daquele pesadelo", ela conta. "Naquele momento, pareciam ser os seres humanos mais frágeis e vulneráveis que podiam existir."
Os ocupantes do barco estavam à deriva no mar há mais de 10 dias. Eles não tinham mais água, comida, nem combustível.
Eles tentavam cruzar do oeste da África para as ilhas Canárias, uma das travessias mais perigosas do mundo. Dezenas de milhares de pessoas tentam fazer este trajeto todos os anos e milhares deles morrem no caminho.
Trazidos a bordo do Avontuur, os migrantes exaustos receberam alimento, água e assistência médica.
"Lembro-me de um deles me dizer 'eu não sabia que o mar é tão grande'", conta Baccosi.
O Avontuur não conseguia transportar mais 16 passageiros. Por isso, foi chamada a guarda costeira.
"Não há heróis... nenhum deles se sente assim", escreveu Giulia Baccosi posteriormente, no seu diário.
"Nós fizemos o que qualquer ser humano decente deveria fazer — e faria — no nosso lugar."
Dias depois, o Avontuur retorna ao Oceano Atlântico e a tripulação foi chamada para se reunir no convés. O capitão, então, lêu um email do dono do navio.
"O mundo que vocês conhecem não existe mais", começava a mensagem.
"Os portos estão fechando, os aeroportos estão fechando, voos são cancelados. Supermercados, lojas, fronteiras — tudo está fechado."
"Após um momento de silêncio, ficamos nos olhando uns para os outros, um tanto surpresos, um pouco confusos", conta ela. "O que estará acontecendo com nossos entes queridos em casa?"
O mundo estava começando a fechar devido à pandemia da covid-19, mas, ali na escuna, as pessoas estavam com dificuldade para entender exatamente o que isso significava.
"Eu quis falar com meu namorado, quis ligar para minha mãe, minha avó, meu irmão", relembra Baccosi.
"Fiquei tomada pelo medo de que algo acontecesse com eles enquanto eu estava no mar, sem poder nem mesmo falar com eles uma última vez."
O único ponto de contato entre a tripulação e o resto do mundo era um e-mail diário por satélite, que conectava o navio ao seu local de procedência, na Alemanha. E o sinal de telefonia ainda estava a pelo menos seis dias de distância.
Sem saber se teria autorização para atracar em algum lugar, o Avontuur seguiu em direção ao Caribe.
Ao se aproximar de Guadalupe, Baccosi se sentou no convés agarra ao celular, aguardando um sinal.
Quando a ligação finalmente foi completada, ela se desmanchou em lágrimas.
"O que vocês vão fazer?", perguntou o parceiro dela.
"Não tenho ideia de nada", respondeu a jovem. "Ninguém sabe."
Normalmente, a chegada a um novo porto significa carga e descarga, licença para desembarcar e a compra de provisões. Para a tripulação, deveria ser uma oportunidade para descansar, andar em terra firme, fazer telefonemas, enviar mensagens e ter um tempo para se divertir.
"Quando você divide um navio com 15 pessoas, você nunca fica a mais de alguns metros de distância de todos os outros seres humanos com quem você vive", contou ela.
No porto havia pouca atividade, até que surgiram alguns funcionários, usando máscaras cirúrgicas. Eles pediram ao Avontuur que deixassem Guadalupe o mais rápido possível. A tripulação não conseguia acreditar no que estava acontecendo.
Após mais de três semanas no mar e ainda se recuperando da notícia de que o mundo estava em lockdown, os tripulantes não foram autorizados a desembarcar e se viram obrigados a seguir em frente.
Sua próxima escala foi Honduras, que estava a até 15 dias de distância. Nas semanas seguintes, enquanto as pessoas em terra estavam trancadas em suas casas, a tripulação do Avontuur foi proibida de descer do navio na maioria dos portos que cruzavam seu caminho.
Ficou claro que todas as chegadas e partidas planejadas do navio eram impensáveis, incluindo o plano de Giulia Baccosi, de desembarcar no México. E começou a parecer improvável que alguém colocasse os pés em terra firme em qualquer porto, até que o Avontuur retornasse à Alemanha.
Com isso, conseguir comida ficou cada vez mais difícil, o que deixou Baccosi preocupada.
Como ela conseguiria alimentar os 15 membros da tripulação, agora confinados a um espaço com o tamanho aproximado de uma quadra de basquete, enquanto a tensão entre eles aumentava?
Os pensamentos da jovem se voltavam cada vez mais para os seus entes queridos.
"Parece surreal ficar confinada nesta bolha flutuante", escreveu ela em uma mensagem pronta para ser enviada a parentes pelo Instagram. "Espero que vocês estejam todos bem e seguros por aí."
Para combater o tédio e a ansiedade, a tripulação começou a fazer artesanato, a desenhar e a tocar instrumentos. Eles montaram uma esquema usando uma rede de carga para poderem nadar com segurança em volta da popa. Alguns tripulantes encontram alívio em relacionamentos amorosos.
"Existe química, existe atração", conta Baccosi.
"Buscar intimidade e toque físico é muito humano. Nesses momentos, você consegue esquecer que existe algo lá fora que está fora de controle."
A tripulação também encontrou conforto nas maravilhas do oceano, como golfinhos e peixes-voadores. Uma noite, eles recebem a visita de um grupo de baleias minke amigáveis, nadando em água bioluminescente.
"Elas ficam tão próximas que podíamos sentir sua respiração", relembra Baccosi.
"O momento mais bonito, tão magnífico, maravilhoso e onírico — mesmo com cheiro de pum."
Em certo momento, o Avontuur precisou fazer ações evasivas para evitar um furacão e navegou para o norte, até a Terra Nova, no litoral do Canadá.
A comida estava acabando. Baccosi fez um inventário e percebeu que eles não tinham comida seca suficiente para voltar para a Alemanha.
Alguns produtos, como café ("a única coisa que impulsiona um marinheiro"), precisam ser racionados. E ela se deu conta de que o gás também estava acabando.
"Era a nossa principal fonte de energia para cozinhar", relembra ela. "E não tínhamos plano B."
Ele construíram uma panela de cozimento lento improvisada usando uma caixa de madeira, espuma de construção e uma esteira de ioga. E funcionou.
"De alguma forma, partindo de uma situação muito séria e preocupante, acabamos comendo alguns dos melhores cozidos que já fiz na vida", ela conta.
Em junho de 2020, o Avontuur finalmente pode atracar em Horta, no exuberante arquipélago vulcânico dos Açores, a oeste de Portugal.
A tripulação era toda de cidadãos da União Europeia e seu desembarque seria permitido se todos fizessem o teste de covid.
Dias depois, veio a autorização. Depois de quatro meses e meio no mar, eles finalmente puderam desembarcar. E Giulia Baccosi quer aproveitar cada momento.
"Quero as flores, quero a grama, quero o bar, quero as pessoas, quero sair e comprar chocolate", relembra ela, "a possibilidade de andar e decidir se você vai para a esquerda ou para a direita."
O ânimo melhorou entre a tripulação e eles começaram a olhar ansiosos para o trecho final da viagem, de volta para a Europa.
"Sabíamos que estávamos indo para casa", conta ela.
No final de julho, depois de 188 dias no mar, o Avontuur finalmente se aproxima do porto alemão de Hamburgo. A tripulação dá as mãos quando o navio atraca.
"Meus olhos se encheram de lágrimas", relembra Baccosi. "Esperamos este momento por tanto tempo e agora é real."
Mas ainda há trabalho a fazer. O porão do navio está repleto de sacos. Os 15 marinheiros tiveram que descarregar as 64 toneladas de óleo de oliva, café, cacau e rum trazidas do Caribe.
Finalmente, missão cumprida. "Nossa tarefa está feita — é hora de comemorar!"
Em uma festa de retorno ao lar, a tripulação vestiu camisetas com os dizeres: "O mundo que vocês conhecem não existe mais."
Baccosi começou a sentir como se fosse outra pessoa.
"Estou de volta, mas não sou a mesma pessoa de antes. Fico imaginando como irei me encaixar, como um novo eu, na minha velha vida."
A longa viagem no Avontuur não impediu que GIulia Baccosi retornasse à vida no mar.
Ela não esperava voltar a trabalhar como cozinheira de um navio, mas, cinco anos depois, ela estava a bordo novamente, em algum lugar perto do litoral da Groenlândia.
De vez em quando, como fez na véspera de Ano Novo, cinco anos atrás, ela olha para o céu e pede um sinal para o Universo, para ter certeza de que está no caminho certo.
Ouça aqui o episódio do programa de rádio Lives Less Ordinary, do Serviço Mundial da BBC (em inglês), que deu origem a esta reportagem.