Infraestrutura precária, ganância e colonialismo interno alimentam crise de acomodação na COP 30
Preço de hotéis pode levar a esvaziamento do evento; mas presença significativa de países e delegações é fundamental para legitimar as discussões da conferência
Nos últimos dias, a COP 30, prevista para ser realizada em novembro em Belém, no Pará, esteve envolta em uma polêmica que nada tem a ver com a resolução dos problemas ambientais do planeta. O que se tornou o centro das atenções nos debates sobre a conferência é o que a imprensa nacional denominou de "crise de hospedagem".
O Secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores e presidente da COP 30, André Corrêa do Lago, afirmou que países têm pressionado o Brasil a transferir a conferência climática da ONU de Belém para outra cidade, em razão dos "valores exorbitantes" cobrados pelos hotéis da capital paraense. Alguns governos chegaram a cogitar não participar da conferência ou reduzir suas delegações.
Como chegamos a isso? Uma baixíssima quantidade de leitos, a ação extremamente gananciosa da rede hoteleira e um preconceito histórico levaram à tempestade perfeita da atual crise.
Um problema histórico
No final do século 17, Belém tinha três vezes mais habitantes que São Paulo. A capital paraense foi, ainda, uma das primeiras cidades do país a ter energia pública, movida por gás. Isso, porque, naquele momento, a cidade vivia o primeiro ciclo da extração da borracha, uma atividade econômica que atraía muitos recursos e pessoas para a região. Vivíamos o que chamamos de Belle Époque.
Mas, com o declínio da borracha, Belém e outras cidades da Amazônia perderam protagonismo e hoje a capital do Pará é uma cidade do sul global — como outras cidades do mundo (e aqui podemos citar, inclusive, Baku, no Azerbaijão, que sediou a COP 29) —, que também enfrenta uma série de problemas de infraestrutura.
Além da evidente deficiência de infraestrutura urbana, que gera e aprofunda a injustiça socioespacial, outros problemas podem ser percebidos, como o tamanho da rede hoteleira, que é muito pequena para comportar uma demanda de mais de 50 mil leitos, que é o que se espera para a COP. E é aqui que começa a operar, de forma irrealista, a famosa lei de oferta e demanda.
Lei de mercado
O problema foi crescendo em cascata, mas tudo começou com a rede hoteleira. Desde o início do ano, os hotéis começaram a aumentar os preços das acomodações, e a projetar valores ainda maiores para o período do evento.
E o que aconteceu? As pessoas interessadas em participar da COP acabaram buscando outras alternativas, como as plataformas como Booking e Airbnb. Quando a população viu que havia uma grande demanda, as acomodações individuais também acabaram sofrendo uma escalada vertiginosa de preços, muitas vezes em razão de escritórios jurídicos e corretores imobiliários que prometiam conseguir valores astronômicos pela estadia.
É natural que, com uma maior demanda, os preços subam, mas não de forma exorbitante. O que se observa agora é esse exagero na lei de mercado.
O problema se torna ainda mais complexo quando se percebe que até hotéis que se beneficiaram de recursos públicos se recusam a praticar preços razoáveis. É o caso, por exemplo, do hotel que está sendo construído pela Rede Tivoli, num prédio que pertencia à Receita Federal do Brasil e estava fechado desde 2012 em razão de um incêndio.
O prédio foi cedido pelo governo do Pará à iniciativa privada por um período de 30 anos e deve contar com mais de 250 apartamentos para a COP. A rede de hotéis ainda recebeu financiamento estatal para renovação do prédio. Apesar da cessão do imóvel e do financiamento com recursos públicos, o valor médio da diária cobrada pelo novo hotel é de R$ 15 mil durante o evento. A suíte presidencial custará R$ 206 mil. Um absurdo!
Não há dúvidas de que o problema dos preços da hospedagem para a COP é real, assim como os problemas de infraestrutura da cidade que vêm sendo relatados na imprensa.
Mas o que nos incomoda — e aqui falo como amazônida — é o discurso de setores da imprensa e da parte da sociedade brasileira, que acaba por desmerecer a cidade e toda a região amazônica, revelando um colonialismo interno que sempre existiu no país. Por trás das críticas aos preços dos hotéis, muitas vezes se esconde um forte e histórico preconceito que assume que uma cidade amazônica nunca poderia receber um evento desse porte e importância.
No entanto, é muito importante e simbólico que seja no ambiente amazônico que esteja instalado o palco no qual serão travados os debates sobre os temas inseridos no Acordo de Paris, como as mudanças climáticas, NDCs, metas de longo prazo e, sobretudo, a questão do financiamento climático para contribuir com a mitigação e adaptação climática.
Soluções possíveis
A legislação urbanística possui instrumentos para controlar a especulação imobiliária, como o IPTU progressivo, o parcelamento e a edificação compulsória ou desapropriação-sanção dos imóveis que não cumprem com a função social. Infelizmente, Belém é um "case" de sucesso quando se fala de inaplicabilidade de instrumentos de planejamento urbano.
Pode-se argumentar que há uma inércia histórica, ou até mesmo uma omissão, do Poder Executivo, sobretudo do governo municipal e do Legislativo, mas também do Ministério Público, por não terem atuado e cobrado devidamente que esses instrumentos fossem aplicados. Agora, eles não são mais viáveis, porque seus efeitos se dão a médio e a longo prazo.
A curto prazo, seria necessária uma regulação dos preços, que o Estado brasileiro não pode fazer por falta de autorização legal para isso. A Secretaria do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, chegou a solicitar que os hotéis prestassem informações sobre os valores das diárias, mas eles simplesmente ignoraram o requerimento, com a alegação, endossada pela Associação Brasileira de Hotéis, de que se trata de uma questão de mercado.
O que pode — e deve — ser feito são ações pontuais. Acredito que a mais importante delas seja uma campanha de comunicação potente que tente convencer as famílias e os proprietários de hotéis, motéis, pousadas e dos albergues a praticarem preços razoáveis. Não é uma tarefa fácil, mas acredito que essa estratégia de comunicação possa ser eficaz.
O governo federal tem se esforçado, e trará para a cidade dois transatlânticos que ofertarão em torno de 6 mil leitos. O governo também criou uma plataforma de hospedagem, que é uma alternativa com 2.500 quartos disponibilizados.
Outras ações também são possíveis. A ONU poderia, por exemplo, oferecer um subsídio maior aos países e delegações do sul global, países em desenvolvimento, visando garantir um maior número de participantes.
A hospedagem em cidades vizinhas é outra alternativa. Temos cidades da região metropolitana que também ofertarão acomodações, e também cidades turísticas na beira do oceano, como Salinópolis, onde há vários resorts e condomínios confortáveis.
Decisões inadiáveis
Não há tempo hábil para a mudança de sede da COP, ela será em Belém. O que há o risco de que o evento seja esvaziado. E a presença do maior número de países e delegações na conferência das partes é fundamental para legitimar as decisões que venham a ser tomadas.
Essas decisões precisam, de fato, enfrentar o problema da emergência climática planetária que vivemos. Não podemos ter mais uma COP onde as decisões sejam inócuas. Precisamos de conferências cujas decisões sejam fortes, vigorosas e aplicadas, garantindo a transferência de recursos dos países desenvolvidos para os países do Sul global, numa compensação ambiental pela maior poluição causada pelos países do Norte e pelo serviço ambiental prestado pelos países amazônicos (como a conservação da floresta, por exemplo).
Contudo, não será fácil que a COP 30 chegue a essas decisões. Afinal, assistimos a um crescimento de uma extrema-direita mundial, liderada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que nega o aquecimento global. E neste ambiente de negação àquilo que a ciência já mostrou que é real, muito provavelmente que os países signatários do Acordo de Paris enfrentem obstáculos à adoção conjunta de medidas que impliquem, de fato, em ações concretas que enfrentem a crise climática planetária.
Mas, para que haja pelo menos a possibilidade de discussão dessas questões, é preciso que as delegações venham ao Pará para o evento. E sou otimista quanto a isso. Acredito que — ainda que aos 45 do segundo tempo — teremos as acomodações com um preço menor.
O paraense é hospitaleiro e gosta de receber visitantes, temos uma cultura rica e uma culinária singular. Não é momento para ganância, mas sim para receber as pessoas e mostrar a elas a nossa cidade, nosso modo de vida, e o que a Amazônia precisa. Afinal, quem melhor entende de Amazônia somos nós, os amazônidas.
Bruno Soeiro Vieira não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.