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Do diagnóstico à reabilitação, inteligência artificial ajuda os pacientes de AVC

Pesquisadores brasileiros buscam aplicativos para rastrear e prever complicações e ampliar análises hoje difíceis para o cérebro humano, enquanto tecnologias já existentes permitem reduzir exames e internações

25 set 2021 - 14h10
(atualizado em 26/9/2021 às 07h49)
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A inteligência artificial está sendo cada vez mais utilizada em diagnóstico, tratamento e reabilitação de pacientes após um acidente vascular cerebral (AVC), principal causa mundial de invalidez ao afastar uma a cada seis pessoas de suas atividades.

A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, estuda aplicativos para rastrear e prever complicações. Uma delas é a transformação de casos de AVC isquêmico (obstrução dos vasos sanguíneos) em hemorrágico (vazamento do sangue). A partir da coleta de dados de mais de 3 mil pacientes de diversos centros brasileiros e um americano (Columbia University), a pesquisa se tornou referência em vários países e foi premiada pela Academia Brasileira de Neurologia.

Outro estudo aborda a complicação de isquemia cerebral tardia em pacientes com hemorragia subaracnóide (condição geralmente associada a aneurismas cerebrais que se romperam). "A ideia é que esses dados (pressão, temperatura, frequência cardíaca, alterações laboratoriais e dados de doppler transcraniano) gerem um modelo que nos alerte com dias de antecedência sobre risco de complicação", afirma o pesquisador João Brainer, coorientador do programa de Pós-Graduação em Neurologia e Neurociências da Unifesp. A universidade pesquisa ainda, de forma inédita no mundo, a identificação da disfagia (dificuldade de engolir alimentos) a partir do reconhecimento da voz.

Essas pesquisas tentam minimizar dramas como o da faturista Sandra Schulze, que teve um AVC isquêmico em setembro de 2013. Depois de uma noite de sono pesado, ela, de 52 anos, caiu assim que saiu da cama. Não conseguiu mais se mexer, com o braço esquerdo frio e paralisado. Foram três dias na UTI, 15 de internação em um hospital em Joinville. Ainda faz fisioterapia, mas é grata às profissionais que a ajudaram desde o primeiros dias no hospital.

A reabilitação dos pacientes, aliás, é o foco de um estudo pioneiro da Fundação Oswaldo Cruz do Ceará com realidade virtual. Usando os óculos que criam uma realidade paralela e orientado por um profissional de saúde, o paciente simula atividades de cotidiano. Cada movimento é captado por sensores, que formam uma base de dados para avaliar e acompanhar a evolução do tratamento. Também será possível quantificar com precisão informações do espaço, velocidade dos movimentos, angulação dos membros e precisões das ações. Essa nova técnica começará a ser validada clinicamente em outubro no Hospital Geral de Fortaleza, que atende mais de 1,9 mil casos de AVC por ano.

Como funciona

Aplicativos, robôs, algoritmos e softwares que configuram a inteligência artificial fazem análises que o ser humano não consegue. Geralmente, os médicos avaliam duas a três dimensões, como o resultado de exame de um paciente ao longo do tempo. Quando as possibilidades aumentam, o cérebro humano tem dificuldade de processamento. Isso ocorre no caso de variantes genéticas e interação de medicamentos, por exemplo. Aí, a máquina ajuda como reforço ao diagnóstico.

Os sistemas são alimentados com uma "verdade fundamental" - ou um padrão básico a partir do qual as demais decisões são geradas. Se as máquinas são ensinadas que um determinado padrão exibido na imagem é um tumor cerebral, toda vez que for visualizada a mesma anormalidade o sistema irá rotular da mesma maneira.

Mas como elas fazem isso? Essa é uma das questões propostas pelo Centro de Inteligência Artificial (C4AI), parceria entre a Fapesp, a IBM e a USP. Uma das linhas de pesquisa tem relação com "o aprendizado" dos algoritmos. "Os algoritmos conseguem 'ver' coisas que escapam de nós. Queremos saber exatamente como isso acontece", explica José Krieger, médico, pesquisador do Incor e um dos líderes do projeto.

Outra pesquisa do C4AI estuda a modelagem de AVCs. A partir de eletroencefalogramas (EEGs) do Laboratório de Neuromodulação do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, os pesquisadores desenvolveram um sistema de classificação de AVC com técnicas de aprendizado de máquina, i, conjunto de técnicas que podem ser transformadas em algoritmos. Marco Antonio Gutierrez, diretor de TI do Incor, revela que foi utilizada uma base de dados com 200 mil tratados de eletrocardiograma de pacientes. "Depois que os especialistas fizeram os laudos, nós desenvolvemos um algoritmo para aprender a buscar nos tratados as mesmas informações que o especialista procura."

Casos de sucesso

A inteligência artificial ainda não faz parte da realidade hospitalar brasileira. A Fundação Instituto de Pesquisa e Estudo por Diagnóstico por Imagem (Fidi), gestora da radiologia e diagnóstico por imagem no setor público, está presente em 76 hospitais. Desse total, apenas oito contam com a tecnologia de inteligência artificial, sete em São Paulo e outro em Goiás. "O uso ainda não é regra. Existem poucos algoritmos 'comerciais', com aprovação da Anvisa. Além disso, existe o desafio da implementação, com integração entre sistemas diferentes", diz o médico radiologista Igor Santos, superintendente de Inovação da Fidi.

"Avançamos muito nos últimos cinco anos, mas ainda não são todos os hospitais que utilizam o tratamento (com ajuda da inteligência artificial)", afirma a neurologista vascular Sheila Martins, fundadora, presidente da Rede Brasileira de AVC e professora de Neurologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O neurologista Octávio Pontes, professor da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto e coordenador da Rede Nacional de Pesquisa em AVC, afirma que os custos são uma limitação. "É importante a parceria com empresas com produtos em desenvolvimento para incorporar esses avanços em diagnóstico, prevenção, tratamento e reabilitação de pacientes."

Quem já utiliza os algoritmos contabiliza avanços. O Hospital Israelita Albert Einstein, que usa a tecnologia desde 2019, aponta que alguns benefícios são o auxílio diagnóstico ao neurorradiologista, a quantificação de maneira automatizada das áreas de isquemia e potencialmente salváveis com o tratamento, bem como na maior resolutividade da tomografia em casos de pacientes que acordam com AVC ou que estão fora da janela terapêutica de 6 horas.

No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, como relata Sheila Martins, uma das conquistas é o uso do software de perfusão, capaz de mostrar as áreas do cérebro que já morreram (cor de rosa) e aquelas que estão em sofrimento, mas que podem ser salvas (verde). "Isso é fundamental nos casos em que o paciente chega tarde ao hospital ou não é possível precisar o momento do início dos sintomas. Isso permite tratar mais pacientes", afirma.

Na opinião de Igor Santos, um dos principais avanços é a agilização do atendimento. "O período normal de um exame de urgência, seja no público ou no particular, é de duas horas. Tempo entre fazer o exame e receber o laudo. Com a inteligência artificial é possível reduzir isso para 30 minutos. Isso é fundamental", calcula Igor Santos.

Esse tempo foi crucial para o paciente Antonio Valentim da Silva. O aposentado de 71 anos reclamou de tonturas, dor de cabeça e na nuca no início de setembro. Era um AVC. Ele deu entrada no Hospital Mandaqui, um dos hospitais com presença da Fidi, localizado zona norte de São Paulo, às 10h31, do dia 7. Às 10h59, passou pela tomografia com utilização da inteligência artificial e o laudo foi emitido às 11h44. Ele afirma que está bem, mas toma medicação e deverá retornar ao médico dentro de três meses. Ele não tem sequelas. Sua mulher, Arcendina Cândida, afirma que a rapidez no atendimento foi fundamental. Nesta sexta-feira, ela e o marido completaram 44 anos de casamento.

Nelson Fortes, coordenador da neurorradiologia diagnóstica do Hcor, um dos hospitais pioneiros no uso da tecnologia, ressalta a importância da combinação da importância da inteligência humana com a inteligência artificial. "A máquina não substitui o ser humano. Ela orienta o clínico", explica. "Nos casos de AVC, nos quais o paciente está inquieto, o movimento pode gerar um falso positivo."

No dia a dia

No Hospital Albert Einstein, o protocolo de utilização da inteligência artificial é o seguinte:

1. Chegada do paciente em suspeita de AVC ao hospital;

2. Avaliação com neurologista e realização de tomografia de crânio e angiotomografia arterial;

3. Conectado ao tomógrafo, software de Inteligência artificial (IA) avalia a presença de um AVC e, caso positivo, sua extensão;

4. Na angiotomografia realizada junto à tomografia, a IA analisa a presença de obstrução de vasos e identifica a porcentagem em que o fluxo arterial está reduzido;

5. Em casos selecionados é realizado estudo de perfusão cerebral, outro exame de imagem, onde a IA quantifica as áreas de lesão e as que estão sob risco de isquemia;

6. O neurorradiologista analisa as imagens realizadas e os resultados do pós processamento e comunica o resultado final ao neurologista;

7. Em casos selecionados, pode ser realizada a ressonância magnética; análises de tamanho do infarto e áreas sob risco de isquemia também são avaliadas pela IA;

Estadão
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