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Coronavírus

Cachaça, ozônio no reto e pulverização com álcool gel: as soluções de políticos contra a covid-19

Autoridades difundem medidas sem base científica para enfrentar a pandemia de covid-19

18 mar 2021 - 19h01
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Brasília - A solução é alugar o Brasil, como já sugeriu o poeta? Talvez seja. A se basear pelo rol de ideias que a classe política tem despejado sobre a população para fazer o enfrentamento da covid-19, a proposta de uma locação nacional do País quase deixa de ser uma ironia. Não falta criatividade. Cachaça na barriga, ozônio no ânus, alho cru e, agora, pulverização de cidades com álcool em gel.

Se as vacinas desaparecem nos postos de saúde da maior parte dos municípios do País para enfrentar a tragédia, sobram propostas sem pé nem cabeça que, sob a inspiração do Palácio do Planalto, prometem acabar de vez com a pandemia. Enquanto políticos buscam alternativas fora da ciência, o País bate recorde de mortes diárias, algumas delas por falta de vagas em hospitais.

Ministro recebe defensores do uso de ozônio pelo ânus para tratar covid-19.
Ministro recebe defensores do uso de ozônio pelo ânus para tratar covid-19.
Foto: Reprodução/ Facebook Giovani Cherini / Estadão

Em janeiro, no pequeno município de Lavras da Mangabeira, no Ceará, o vereador Antônio Lobo de Macêdo, o Titil Lobo (MDB) aproveitou uma sessão da Câmara Municipal para defender a cachaça como antídoto contra a covid-19. "Se o álcool mata o vírus, então vamos beber", disse Lobo, que estava inconformado com um decreto municipal que restringia o consumo de bebidas alcoólicas "em locais públicos como praças, açudes e restaurantes. O cientista está dizendo que o álcool é bom, e os governadores tão dizendo que não pode beber o álcool. Nós estamos no escuro em relação a isso, porque, se o álcool protege e mata o vírus, eu vou beber o álcool."

Se em Lavras da Mangabeira a preocupação é beber álcool, nas ruas ladeadas por hortênsias de Canela, no Rio Grande do Sul, os olhos voltam-se para os céus, de onde se pretende lançar milhares de litros de álcool em gel sobre a cabeça da população. A ideia partiu do vereador Alberi Galvani Dias (MDB), que ganhou destaque na mídia internacional ao sugerir a pulverização da cidade contra o coronavírus com o uso de aviões e helicópteros.

"Quem sabe nós poderíamos pulverizar nossa cidade de avião. Não sei se existe álcool gel líquido ou alguma coisa, porque o vírus está no ar. Pulverizar lavouras, talvez seja uma ideia", disse o vereador, sem nenhum constrangimento, diante dos olhos incrédulos e risos de colegas que acompanhavam a sessão.

Constrangimento, aliás, é palavra que não existe no dicionário dos políticos que apresentam suas soluções para acabar com uma doença que desafia a capacidade científica do planeta. Em agosto do ano passado, o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, encontrou tempo em sua agenda para aprofundar seus conhecimentos sobre a inovadora proposta de aplicar ozônio no ânus.

Pazuello participou de um encontro com o deputado Giovani Cherini (PL-RS), que apresentou o projeto de tratamento da "ozonioterapia" em pacientes com covid-19. A prática ganhou notoriedade após o prefeito de Itajaí (SC), Volnei Morastoni, defender a aplicação de ozônio, pelo ânus, em casos confirmados de contaminação.

Para desprazer dos envolvidos, coube mais uma vez à classe médica alertar que a ideia não tem nenhuma evidência científica que comprove sua eficácia. O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) chegou a declarar que os médicos estavam proibidos de prescrever ozonioterapia dentro de consultórios e hospitais, por força de uma resolução do Conselho Federal de Medicina.

Mas não é preciso recorrer ao ozônio para acabar com a covid-19. A sensação de que a cura "pode estar do seu lado e só você não vê" também povoa a cabeça do próprio presidente Jair Bolsonaro. Em junho do ano passado, Bolsonaro também pediu que uma equipe técnica do Ministério da Saúde parasse o que estava fazendo para receber uma mulher que dizia ter a cura da doença, por meio de uma receita de alho cru.

Apoiadora de Bolsonaro, a mulher dizia que conversa com Deus desde os seis anos de idade e que sabia como acabar de vez com a doença. "Eu trouxe a cura do coronavírus e coloco a minha vida à disposição", disse ao presidente. "Preciso que ponha a prova. Podem injetar o vírus em mim. Eu assumo todas as responsabilidades. Eu trouxe comigo. E é tão natural, é tão perfeita, é tão mágico, é tão natural, é tão de Deus que o povo vai dizer que é impossível."

Os argumentos convenceram o presidente. "Eu te arranjo amanhã para a senhora conversar lá, alguém para conversar com a senhora no Ministério da Saúde. Pode ser? Deixa o telefone com alguém aqui, anota", afirmou Bolsonaro.

De seus gabinetes, políticos também têm colocado espíritos para trabalhar na busca pela cura. Em janeiro, o vereador Raiff Matos, de Manaus, cidade que viveu o epicentro da pandemia no Brasil, decidiu fazer uma proposta de "busca espiritual" para encontrar a cura da doença, durante uma sessão extraordinária que discutia a aprovação de um auxílio emergencial para a capital amazonense.

A fé em curas milagrosas também tem ajudado a fazer dinheiro. No ano passado, sementes de feijão foram vendidas em valores predeterminados de R$ 100 a R$ 1 mil pelo pastor evangélico Valdemiro Santiago e a Igreja Mundial do Poder de Deus, que indicavam o grão milagroso para combater a covid-19.

No ano passado, o Ministério da Saúde chegou a divulgar que era falsa a informação de que as sementes combatiam a doença. Depois, a indicação foi retirada do ar sob a alegação de que "a iniciativa induziu, equivocadamente, ao questionamento da fé e crença de uma parcela da população".

Defensor ferrenho da cloroquina, remédio sem eficácia segundo cientistas, Bolsonaro continua a alimentar a busca por uma "bala de prata" contra a doença. Sua nova aposta foi enviar uma grande comitiva para conhecer um "spray milagroso" de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense que, sem milagres, tem conseguido manter um dos mais bem sucedidos programas de imunização do mundo.

"O que é esse spray? Não sei. Mas o que acontece? Esse produto, há dez anos, estava sendo investigado, estava sendo estudado lá em Israel para outro tipo de vírus. E usou isso daí em 30. Em 29, deu certo. O último demorou um pouco mais, mas também segurou. Parece que é um produto milagroso, parece. Nós vamos atrás disso", declarou Bolsonaro.

Na semana passada, o presidente disse, empolgado, que o Brasil está desenvolvendo sua própria vacina com o ministro da Ciência e Tecnologia, o astronauta Marcos Pontes. "Vai ser a vacina Marcos Pontes", comentou Bolsonaro.

Agora, o astronauta acaba de receber mais uma colaboração para suas pesquisas. O deputado federal Nelson Barbudo (PSL-RS), conhecido pelo chapelão que usa diariamente, foi ao ministério para entregar, em mãos, "um projeto de pesquisa como mais uma ação no enfrentamento à pandemia". O Estadão questionou Barbudo sobre o que ele entregou ao ministro. O deputado disse que não sabe. "Não sei o que entreguei. Como vou saber? Fui procurado por um cientista que quer desenvolver uma pesquisa e precisava abrir porta lá. Foi o que eu fiz, mas não sei o que é", disse ele.

Estadão
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