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Fogo cerca rebanhos no Pantanal

Estadão mostra o Brasil que produz dentro das regras, mas sofre com as queimadas. Equipe de reportagem acompanha a situação em Poconé e traz os relatos de quem vem sendo atingido pelos incêndios

14 set 2020 - 12h10
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O velho fazendeiro e trinta de seus bois estavam encurralados pelo fogo. Jamil Costa, 71 anos, cada minuto da idade vivido neste rincão do Pantanal do Mato Grosso, tentava guiar de caminhonete os animais desgarrados de um rebanho de duas mil e quinhentas cabeças pela Rodovia Transpantaneira quando foi surpreendido pelo bloqueio do caminho. De repente, o incêndio veio ainda, ao longe, de outras frentes. "Estou dentro de um círculo de fogo", disse por rádio a uma filha, desesperado. "Que seja feita a vontade Dele."

As preces do pantaneiro a São Benedito e a São José se sucediam no ritmo do aumento do bafo da queimada que se aproximava. Entre uma oração e outra, ele viu o fogo dar trégua num dos lados e, no rumo das labaredas mais baixas, acelerou o carro na esperança de que por lá o foco fosse curto. Aproveitou a ajuda da Providência para escapar. Por horas, as chamas tomaram um vasto trecho da rodovia e de suas margens. "Mirei meu gado e esqueci de mim", disse, à noite, com a cabeça no gado deixado para trás. Uma relação intensa, de homem e bichos, se rompera.

Dias antes, contou ele ao Estadão, o fogo engolira 90% do pasto nativo da fazenda de 40 mil hectares de Jamil em Porto Jofre, localidade de Poconé, a 290 quilômetros de Cuiabá. Ele decidiu, então, arrendar um curral a quilômetros dali para transferir a boiada. Mas a vida do pantaneiro não é fácil. Os focos também apareceram na nova área e o produtor teve de transferir os animais novamente de lugar.

O cerco do fogo ocorreu nessa segunda transferência. Numa tarde do começo de setembro, Jamil aproveitou o descanso do rebanho na beira da estrada para ajudar um grupo de amigos também fazendeiros a conter uma queimada que atingia uma ponte de madeira. Foi nesse momento que, afastado dos demais, tentou trazer os animais desgarrados para onde estava a maior parte do rebanho e se viu cercado pelo fogo.

Durante uma semana, o fazendeiro e seus vaqueiros não conseguiram ir atrás e saber o paradeiro dos animais - a fumaça densa impedia o monitoramento à distância e as condições de um resgate eram ainda difíceis. Jamil temia que boa parte dos bois tivesse tido o mesmo fim que capivaras, antas, veados e onças mortas nos últimos dias.

Para a surpresa dele e dos boiadeiros, os bichos reapareceram dias depois, ilesos. Tinham feito um caminho próprio para se salvar das labaredas. "É um incêndio criminoso", esbraveja o fazendeiro numa conversa com o Estadão, marcada pela emoção do pantaneiro.

Ele direciona a denúncia para pecuaristas e peões sem conhecimento da região e preocupação com o meio ambiente que chegaram recentemente ao Pantanal. Jamil se abre para dizer que produz dentro das regras impostas por uma legislação ambiental, implantada a partir dos anos 1980, que pouco trouxe de impedimentos à criação tradicional do gado pantaneiro.

O rebanho de Jamil é resultado de um trabalho centenário iniciado por seu pai e seu avô numa época em que o peão que matava onça que ameaçava o gado tinha a façanha premiada com um casal de bezerros. Hoje, a preservação do felino é fundamental para milhares de pantaneiros que complementam a renda proporcionada nos currais e baias com o turismo. A partir de junho, quando a água das planícies começa a baixar, estrangeiros, sobretudo, chegam por terra e ar para conhecer o bioma e observar onças-pintadas em seu ambiente natural. Os onceiros viraram guias. De março para cá, contudo, uma nova realidade se impôs. O fogo atinge a pecuária na mesma velocidade que o coronavírus fechou as portas do turismo.

Tradição

O fazendeiro faz parte de uma geração de pantaneiros que insiste contra as intempéries da criação de bovinos no Pantanal. O ecoturismo é uma atividade muito mais estável. Turistas pagam caras diárias para temporadas de aventuras. De outro lado, até que um bezerro desmamado possa ser vendido por R$ 1.400, é preciso trabalhar duro por dois anos, diante do temor de catástrofes. De março para cá, contudo, uma nova realidade se impôs.

Aqui, a ideologia de "passar a boiada" pregada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de desrespeitar normas legais da área - ou impostas pela natureza -, não faz parte da trajetória dos produtores tradicionais. No Pantanal, a pecuária se desenvolve há quase 300 anos, desde muito antes do boom de abertura de fazendas após a Guerra da Tríplice Fronteira (1864-1870), sem alterar a dinâmica do meio ambiente. A figura do boiadeiro incorporada à paisagem natural tem bases reais. Tradição e modernidade sempre estiveram juntas.

O ritmo da água dos rios da Bacia do Paraguai, na avaliação de especialistas, impôs limites à presença humana e forçou a integração entre o setor produtivo e o meio ambiente. No chuvoso, que começa no próximo mês e vai até março, as águas inundam as terras baixas e retilíneas onde estão as fazendas e, entre abril e setembro, a seca permite aos animais crescerem e engordarem.

Neste tempo de seca, os pantaneiros sempre fizeram queimadas para renovar a pastagem, mas nada na proporção que impactasse a paisagem ou causasse atritos com os órgãos ambientais. A água das inundações ajuda bem mais na limpeza das ervas daninhas. O gado é criado solto. O fazendeiro não se sente obrigado a grandes cuidados nem a gastar com agrotóxicos, deixando para a própria natureza o cuidado diário dos animais. Daí a necessidade de saber os limites e reconhecer o ciclo da vida como parceiro.

No sangue

A variação entre secas prolongadas e enchentes exige habilidade e conhecimento elevados para manejar rebanhos de pasto a pasto sem que o custo das transferências por pontes precárias de madeiras ao longo de dias inviabilize a atividade. É uma destreza que pecuarista recém-chegados não carregam no sangue e que, segundo os antigos, acaba prejudicando todo o ecossistema.

Um hectare de terra no Pantanal pode ser comprado por R$ 300 a R$ 1,2 mil. O valor é irrisório, se comparado com terras produtivas de São Paulo e Minas Gerais, por exemplo. "Vendem uma perninha da terra deles lá e compram uma porção de terra aqui. Vêm numa empolgação, mas não conhece os problemas. Na primeira paulada que levam, abandonam, vão embora e torcem para alguém comprar a fazenda", diz Jamil ao Estadão.

Ele explica que o gado ajuda a manter a vegetação rente ao chão. Pastos abandonados aumentam o acúmulo do material orgânico que pode alimentar queimadas. "Se não voltarem os pantaneiros para o Pantanal, isso (fogo) aqui não vai parar por aqui", diz.

No início da tarde deste domingo Jamil voltou ao combate com o fogo. Ele liderou um grupo de cinco peões para combater um novo foco de incêndio em suas terras. O grupo contava com um trator e um carro-pipa. Jamil subiu no trator e avançou para cavar uma vala e interromper as labaredas. "Esse homem é louco, esse cara vai morrer aí", pensou alto o operador da mangueira.

Só com profundo conhecimento é possível, no tempo de chuva, enxergar os caminhos de terra firme numa paisagem de tanta água. Mas, no tempo de queimada sem fim e disputas ideológicas sem conexão com a vida rural, até os velhos fazendeiros sofrem para identificar trilhas e salvar a boiada do fogo.

Estadão
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