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Política

Historiadora vê tentativa de fraudar história do golpe de 64

Segundo Heloísa Starling, sociedade tem meios de se defender desse ataque simbólico, mas processo é conflituoso

31 mar 2019 - 09h00
(atualizado às 09h31)
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Ao ver próximo o aniversário do golpe militar de 1964, que completa 55 anos neste domingo (31), o presidente Jair Bolsonaro deu início a uma das incontáveis polêmicas de seu início de governo. O mandatário instruiu o Ministério da Defesa, ao qual as Forças Armadas se reportam, a promover as “comemorações devidas” à efeméride – depois, houve um recuo. De acordo com a historiadora Heloísa Starling, o caso faz parte de uma tentativa de “fraudar a história”.

A estudiosa diz que Bolsonaro não enganou ninguém nesse sentido. A trajetória política do atual presidente foi recheada de citações elogiosas aos Anos de Chumbo. Incluiu uma homenagem ao mais famoso torturador do regime, Carlos Alberto Brilhante Ustra, na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) – presa e torturada na ditadura.

Ainda que a ascensão de Bolsonaro tenha fornecido a grupos políticos que defendem o regime militar meios para dar grande repercussão a suas ideias, a historiadora afirma que é impossível mudar a verdade factual. Nem o Stálin conseguiu, e em uma democracia como a brasileira é muito mais difícil, afirma. “Uma dia sai no jornal”, diz ela citando Chico Buarque.

Heloísa Starling é professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Escreveu, junto com Lilia Schwarcz, o livro “Brasil: uma biografia” (Companhia das Letras). É curadora da coleção “Arquivos da Repressão no Brasil”, também editada pela Companhia das Letras.

Ela conversou por cerca de 20 minutos via telefone com o Terra. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Terra: Houve uma polêmica ao longo da semana. O presidente Jair Bolsonaro estimulou que militares festejassem o aniversário do golpe de 1964. Depois veio um recuo, mas o estrago político já estava feito. A posição dele sempre foi favorável ao regime militar, isso não é novidade para ninguém. A senhora observa um movimento de revisionismo histórico sobre o golpe militar vindo de fora da academia?

Heloísa Starling: Sim, eu até escrevi sobre isso, em um capítulo num livro que se chama "A Democracia em Risco?" (Companhia das Letras). Falo do passado que não passa. Isso está acontecendo. Exatamente essa ideia de que se tem a sensação de um passado que não passou. O professor José Murilo de Carvalho fala também sobre isso, especificamente em relação ao golpe militar de 1964. A ideia de que você tem grupos organizados na sociedade tentando produzir uma alteração no conhecimento da história. A ideia de que não foi um golpe e não houve uma ditadura. Eu não sei... eu acho que isso é um pouco mais que fazer uma revisão. Na verdade é fraudar a história. A única verdade do historiador é a verdade factual. Ou seja, o fato. E essa verdade factual só pode ser modificada pela mentira. O fato histórico é: ocorreu um golpe de Estado em 1964. E o resultado desse golpe foi uma ditadura que durou 21 anos. Como eu vou interpretar esse fato é uma outra questão. Agora, tentar apagar o fato é uma fraude.

Terra: Chamar esse movimento de revisionismo de certa forma deslegitima uma prática legítima? A história passa por momentos de revisão dentro das normas científicas.

HS: Sim. Inclusive porque as perguntas que se faz ao passado mudam. Hoje estamos olhando para figuras femininas na história do Brasil. Essa é uma pergunta que não se fazia ao passado. É evidente que a história tem versões, interpretações, tem inclusive revisões. É possível fazer interpretações ideológicas da história para agradar o poder ou disfarçar determinados assuntos ou outros aspectos que interessem a um partido ou uma luta política. Isso é uma coisa. Outra coisa é você negar o fato histórico. Fraude é a negação da verdade histórica.

Terra: Pessoas que não chamam o golpe militar de golpe, que não chamam a ditadura militar de ditadura, existem desde a ditadura. Mas agora uma dessas pessoas é presidente da República e montou um alto escalão federal que em grande parte comunga dessa fraude histórica, como a senhora coloca. Qual o real poder do governo federal para conduzir uma fraude histórica nesse sentido? Ele consegue mudar significativamente o entendimento da sociedade brasileira sobre a ditadura militar estando no poder?

HS: Não. Como diz o Chico Buarque, um dia vai dar no jornal. Pensa em um regime autoritário com o stalinismo, que fraudou a ponto de apagar Trotsky de fotografias. Apagar quem caía em desgraça com o regime. Não funcionou. Isso em uma ditadura, em uma forma autoritária. Um dia dá no jornal. No Brasil, você tem uma democracia, então é mais difícil ainda. Porque não há como apagar o trabalho dos historiadores, ou dos jornalistas. Na coleção da Companhia das Letras (Arquivos da Repressão no Brasil) tem uma coisa interessante, jornalistas fazem a informação e historiadores fazem a narrativa. Eu nunca tinha visto jornalistas e historiadores juntos no Brasil para produzir conhecimento. Eu achei bacana demais poder fazer isso. E você repare lá, no trabalho do Rubens Valente, por exemplo ["Os Fuzis e as Flechas", que conta a relação desrespeitosa da ditadura militar com indígenas, tendo como resultado incontáveis índios mortos]... eu fico pensando que não tem muito jeito de manter a fraude. Ela pode, em um regime totalitário, ser mantida durante algum tempo. Mas não durante todo o tempo. Na democracia, é muito mais difícil ainda. Você tem que eliminar três lugares de produção de pensamento: a imprensa, a universidade e as artes. Tem uma quantidade enorme de artistas que enfrentaram momentos muito pesados da ditadura produzindo obras.

Terra: A senhora citou que "uma hora dá no jornal" e citou o livro do Rubens Valente, que é feito com base em várias caixas de documentos antigos. Mas na mesma coleção da Companhia das Letras tem um livro que é justamente sobre o sumiço de provas materiais da época da ditadura ["Lugar Nenhum", de Lucas Figueiredo]. A existência desse livro não seria uma prova de que certas coisas não vão dar no jornal nunca?

HS: Mas a existência do livro não é uma prova de que elas deram no jornal? A hipótese do livro é que os documentos foram microfilmados e no papel foram destruídos. E a suposição era que ninguém ia saber disso. Agora, cabe à sociedade brasileira e ao Estado querer ver esses documentos ou não. Não tem como apagar a história. É por isso que eu digo tanto que um dia vai dar no jornal.

Terra: Na avaliação da senhora a sociedade como um todo tem meios para se defender desse revisionismo fraudulento, então.

HS: Tem meios de se defender por causa desses três componentes [universidade, imprensa e artes]. Agora, é um processo difícil, conflituoso. Na verdade, isso não é bom para a democracia. Se você elimina a verdade factual, tudo vira opinião.

Terra: Olhando notícias da época do governo Sarney, quando a abertura era recente (1985), tive a impressão de que os principais militares da ditadura e dos altos comandos depois do fim da ditadura queriam jogar uma pá de cal sobre o assunto. Que não se falasse mais no regime. Era comum ver militares graduados dizendo que "a anistia foi para todos" e coisas do tipo. Hoje eu vejo por exemplo o general Mourão fazer defesas públicas da ditadura. Houve uma mudança de mentalidade nos defensores da ditadura?

HS: Houve uma mudança de pensamento? Não. Eu acho que você tem hoje grupos conservadores organizados que certamente estão querendo fazer essa alteração na narrativa da história, alterar a história. Esses grupos, estando no governo, produzem isso que estamos vendo.

Terra: O Brasil não foi o único país do Cone Sul que teve ditadura, mas não se vê na Argentina ou no Chile, por exemplo, o que se está vendo hoje por aqui. Por quê?

HS: Cada país teve um processo diferente. Eu acho que o caso da Argentina é bastante diferente do Brasil. No caso do Brasil, você tem uma transição que, bem ou mal, foi negociada.

Terra: Transição "lenta gradual e segura" [ainda durante a ditadura, falava-se em redemocratização nesses termos]?

HS: Eu não acho que ela foi lenta, gradual e segura porque a sociedade se mobilizou. Mas ela tem pontos nos quais fica clara a transição negociada. Por exemplo, a Lei da Anistia, a maneira como a Constituição de 1988 lida com as Forças Armadas. São pontos que mostram isso. Isso produz diferenças. Mas você pode ver um governo, como no Chile, que o presidente [Sebastián Piñera] está dizendo "olha, eu não concordo com o que ele está dizendo com relação a ditadura, tortura, etc". Você pode ser conservador e democrata. E você tem ultraconservadores.

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Fonte: Redação Terra
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