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É hipocrisia criticar ação policial sem conhecer a realidade da cracolândia, diz psicóloga

Pesquisadora da Unifesp que atua na região há cinco anos diz que violência do tráfico aumentara na região e que havia 'absurdos' ocorrendo sem ciência da opinião pública.

26 mai 2017 - 18h10
(atualizado em 29/5/2017 às 18h02)
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Cracolândia
Cracolândia
Foto: BBC News Brasil

A psicóloga Clarice Madruga, de 39 anos, conhece bem o cotidiano da cracolândia de São Paulo. Nos últimos cinco anos, atuou na capacitação de equipes do governo estadual que atuam na região e coordenou pesquisas que traçaram o perfil dos usuários de drogas da área.

Para ela, há "hipocrisia" em algumas críticas à operação policial de combate ao tráfico que na semana passada dispersou usuários e o "feirão da droga" que funcionava no local.

"É uma hipocrisia. As pessoas de repente discutem direitos humanos em relação a uma ação da polícia, mas do crime ninguém fala. Como se a cracolândia fosse um parque de diversões: estavam todos brincando de roda quando chegou uma operação maligna", afirma a pesquisadora e pós-graduanda do departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Madruga diz que "todos os direitos humanos possíveis e imagináveis" já estavam sendo desrespeitados com a ação de traficantes que, segundo ela, dominam com "tirania" os dependentes químicos na região.

"Vi crianças sendo espancadas, com braço e perna quebrados, porque não seguiram alguma regra. Vi usuário vindo à tenda (do programa Recomeço, estadual) para pedir intervenção e ser esfaqueado lá dentro porque estava devendo", conta Madruga, para quem a violência desses grupos recrudesceu neste ano.

Nesta semana, a BBC Brasil publicou entrevista com o neurocientista Carl Hart, professor da Universidade de Columbia (EUA) que estuda drogas há 20 anos e já visitou o Brasil e a cracolândia de São Paulo. Hart avaliou a ação policial como prova de "falta de compaixão" dos governos municipal e estadual, que estariam "fazendo política com pessoas".

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ação na cracolândia
ação na cracolândia
Foto: BBC News Brasil

Para Clarice Madruga, que tem mestrado em neurociências e em psicologia com ênfase em dependência química, é preciso ver o que ocorrerá daqui em diante para julgar o sucesso da ação policial, que ela considerava inevitável.

"Claro que é ruim ter que fazer esse tipo de operação. Óbvio que é preciso ter agentes de saúde e assistência social antes de considerar aquilo como problema de polícia, mas da forma como estava não vejo outra alternativa para tentar quebrar aquele ciclo", diz ela, lembrando que a ação da polícia ocorreu sem confrontos e feridos graves, diferentemente de intervenções no passado recente.

"Uma ação que claro que é desespeitosa, é a polícia. Não acompanhei a operação, sei que foram truculentos, que houve desrespeito, mas ninguém fala dos absurdos que estavam ocorrendo lá. É chocante pensar que foi preciso chegar onde chegou. Aquelas cenas (da ação policial) que para todo mundo são chocantes, de fato são, mas chocam menos que as cenas vividas dentro da cracolândia", completa.

'Erros da prefeitura'

Apesar de rebater críticas à operação policial, a professora diz ver equívocos nas políticas anticrack da gestão João Doria (PSDB), sobretudo no pedido à Justiça, feito nesta semana, de autorização para fazer internações contra a vontade dos dependentes químicos.

Para ela, o erro está na solicitação, feita por Doria, de uma espécie de autorização coletiva, sem necessidade de análise individual pelo Judiciário. Atualmente, cada caso de internação compulsória deve ser respaldado por laudo médico e autorizado de modo individualizado pela Justiça.

"Ninguém em sã consciência pode concordar com isso. Duvido que (o prefeito) consiga levar isso adiante, haverá todo tipo de bloqueio", afirma. Ministério Público de São Paulo, por exemplo, já declarou que o pedido de Doria pode motivar uma "caçada humana".

Ação policial na cracolândia em 21 de maio de 2017
Ação policial na cracolândia em 21 de maio de 2017
Foto: BBC News Brasil

A divulgação da intenção da prefeitura de internar viciados contra à vontade, segundo ela, também já prejudica a situação das equipes que estão em campo tentando acolher os dependentes que se dispersaram, que ficaram mais arredios. "É terrível que tenha sido falado de internação em massa, porque isso boicotou as tentativas de abordagem social, de acolhimento."

"Sou absolutamente contrária a essa ideia e espero que prevaleça o trabalho preventivo de reinserção social tão necessário para que a coisa funcione", afirma Madruga.

A Prefeitura de São Paulo diz que o pedido de internação é "apenas mais um instrumento para atender às pessoas". "Nenhum médico será obrigado a realizar internações compulsórias e não há nenhuma ação da prefeitura no sentido de internação em massa", informou a gestão.

A administração disse ainda que agentes de assistência social e saúde realizaram "mais de 5 mil abordagens e 2.445 acolhimentos" desde a operação policial, e que já está em funcionamento na região uma base com capacidade para atender 80 pessoas por dia, com dois psiquiatras de plantão em regime de 24 horas.

Perfil da cracolândia

Madruga foi orientadora de um estudo realizado para o programa Recomeço por alunos da especialização em dependência química da Unifesp entre maio e junho de 2016 que buscou identificar o perfil e o histórico de consumo de drogas dos frequentadores da cracolândia.

A pesquisa estimou que havia à época cerca de 700 usuarios frequentando a região, dos quais 107 foram entrevistados.

Entre os entrevistados, prevaleciam homens (79%) com idade média de 34 anos, desempregados (72%), moradores de rua (68%) e com ensino fundamental incompleto (46%). Destacou-se o consumo de tabaco (86%), álcool (83%), crack (76%), maconha (70%) e cocaína (59%).

Cerca de 30% dos participantes relataram já ter sofrido overdose. Doenças contagiosas confirmadas também foram alvo de perguntas - 20,6% apontaram sífilis, 11,2% tuberculose e 5,6%, HIV. Mais da metade (56%) relatou prática recente de sexo sem proteção e 57,9% disseram ter tido pensamentos suicidas. E 71% manifestaram desejo de deixar de usar crack.

Para Madruga, após o choque inicial pelas cenas degradantes, é possível constatar, pela vivência no local, que há colaboração e laços comunitários entre as pessoas. "Você vê que tem uma comunidade ali, com personalidades. Há churrascos, sambas", conta.

'Falhas no Braços Abertos'

Embora não seja contrária às chamadas políticas de redução de danos, princípio que inspirou o programa Braços Abertos, iniciativa da gestão Fernando Haddad (PT) extinta por Doria, Madruga afirma que a ação petista era uma "boa ideia" que fracassou por falhas de planejamento e execução.

"A ideia da varrição, por exemplo, não funcionou (dependentes ganhavam R$ 15 por dia da prefeitura se trabalhassem em atividades como varrição e jardinagem). No final praticamente ninguém varria nada e todo o dinheiro ia para comprar droga", afirma ela, para quem a escalada da violência atual dificultava o trabalho social na região.

"Muitos usuários não conseguiam sair (da cracolândia) porque deviam para o tráfico", afirma.

A pesquisadora também vê problemas em pesquisa de avaliação do Braços Abertos que no ano passado entrevistou 80 beneficiários e apontou impacto positivo na vida de 95% dos usuários e que duas em cada três pessoas tinham reduzido o consumo.

"A pesquisa tem limitações metodológicas sérias. Pegaram só (frequentadores da cracolândia) que estavam dentro do programa, que eram 20% do total. Entrevistaram só 10% desse total e há um viés de seleção na amostra, pois entrevistaram quem já estava em uma situação melhor", diz.

A Plataforma Brasileira de Política de Drogas, que conduziu a pesquisa sobre o Braços Abertos, rebate as críticas. Diz que o estudo foi preliminar e visava analisar o impacto entre beneficiários, e que não procede a afirmação de que foram entrevistados apenas quem havia melhorado a situação do vício.

Diz que houve ainda uma etapa qualitativa, com entrevistas sobre a vida dos usuários, e que o trabalho foi independente, financiado por recursos internacionais e sem "nenhum tipo de comprometimento com a gestão municipal".

Praça Princesa Isabel
Praça Princesa Isabel
Foto: BBC News Brasil

Possíveis saídas

Sobre a atual dispersão da cracolândia por diversos pontos de São Paulo, a pesquisadora da Unifesp diz considerar que agora é o momento crucial para tentar buscar e reinserir esses usuários na sociedade. Ela diz que funcionários do tráfico já se movimentam na praça Princesa Isabel, para onde a maior parte dos usuários espalhados pela ação de domingo se deslocou.

"Os dependentes não irão dizer que é um alívio dormirem espalhados porque o crack não está mais na mão deles, mas na verdade eles saíram da tirania a que eram submetidos lá", afirma, apontando ter notado reforço, pela prefeitura, das equipes de assistência social.

"Tem que ser ação social intensa. Notei um aumento das equipes (depois da ação policial), gente com menos experiência de abordagem a usuários, mas pelo menos conseguiram colocar gente lá com uma intenção. É fazer alguma coisa enquanto o sistema (de domínio do tráfico) se desmantelou um pouco", afirma.

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