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O ataque ao sagrado africano: racismo não é intolerância

Ataques às religiões de matriz africana são manifestações de ranço racial anti-negro

7 dez 2022 - 11h59
(atualizado às 12h08)
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Estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi incendiada em Salvador
Estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi incendiada em Salvador
Foto: Reprodução/Instagram

No último dia 4 de dezembro, quando a Umbanda comemora o dia da Orixá Iansã (que é sincretizada com Santa Bárbara), temos a repugnante notícia de um violento atentado à escultura de Mãe Stella, que fica em uma avenida que leva o nome dessa que foi uma das mais proeminentes figuras do Candomblé, em Salvador/BA.

Erguer uma escultura em um espaço público é consolidar no espaço físico comum um símbolo importante, que representa, entre outras coisas, a relevância do pensamento e/ou da ação de algo ou alguém. E aqui estamos falando dos discursos simbólicos contidos nos espaços urbanos, que também são territórios de disputas de narrativas e imaginários sociais, assunto que está no escopo do direito à cidade.

E, nesse caso, esse alguém foi uma das mais aguerridas vozes contra o racismo, atuando primordialmente no campo da religiosidade e da intelectualidade. Uma luta política e social que a alçou ao lugar de relevância que permanece, mesmo depois de seu desencarne (morte do corpo físico). 

Mas, embora muitos discordem, por ignorância ou alienação, as religiões não são avessas ou opostas ao contexto político da sociedade. Ao contrário, elas informam esses contextos sociais e, mais que isso, elas também espelham e retroalimentam as relações de poder que que se expressam através das opressões e, que “dão vida” às desigualdades sociais. Isso é uma dinâmica histórica e muito similar ao que acontece com nossas cidades. Todos os espaços, sejam físicos ou sociais, informam discursos e intenções políticas que determinam a configuração das nossas vivências coletivas. 

Porque é reducionista chamar racismo de intolerância

Por tudo isso, é absolutamente reducionista nomear o ocorrido com a escultura de Mãe Stella de Oxóssi de intolerância religiosa. Foi um caso de racismo religioso e trago alguns pontos para aprofundar esse entendimento. 

O racismo é o alicerce que sustenta nossa sociedade e isso significa que foi a partir dele que tudo foi construído e se mantém. Mas ele se desenvolve e se estabelece como um  sistema, cuja dominação e o apagamento são práticas prementes, eficientes e poderosas. Primeiro, há o apagamento das informações e características que compõem uma situação ou uma representação humana e seus feitos. Isso abre um vácuo sócio político propício para a dominação, de corpos e de narrativas, através da substituição ou preenchimento com os elementos convenientes para quem apaga. 

Você pode não concordar com a ação política que a religião exerceu e exerce nas decisões que direcionam a sociedade. Mas isso é histórico e também um campo importante a ser compreendido, porque passa pelas necessidades subjetivas do humano, como o alívio da angústia de estar aqui e os mistérios que isso implica, entre outros sentimentos e emoções. Um Deus (ou deuses) são verdadeiros apoiadores das carências e debilidades humanas que não conseguimos dar conta com as teorias e conceitos que criamos. 

Se retiramos essa possibilidade, a de termos a fé como suporte, a fragilidade se aprofunda. Não por acaso, no período colonial, a prática religiosa negra foi coibida e demonizada. Uma vez que a negritude não tinha o exercício da fé como fortalecedor subjetivo e alívio para suas dores, não poderia ter também os meios para renovação de seus propósitos e, aí, percebemos a dinâmica do apagamento (o vácuo) x dominação(o preenchimento colonizador).

Essa dinâmica levou as pessoas escravizadas a uma bifurcação de problemas: a clandestinidade, já que muitos não vendo outra alternativa e se recusando a aderir a religiosidade imposta pelo colonizador, praticava seu culto às escondidas e a rejeição, como autoproteção, aos seus cultos e a todas as informações culturais ancestrais que eles também representavam, para depois aderir ao culto branco e europeu . 

Nas considerações brancas toda clandestinidade deve ser criminalizada, punida, jamais compreendida. E assim a colonização conseguiu desconectar muitos africanos escravizados das suas raízes religiosas ancestrais e com o tempo, convencer as gerações vindouras, de que a demonização às práticas de origem africana era legítima. 

Os efeitos da colonização na religiosidade da pessoa negra

Quantos negros e negras, hoje, estão livres dos resquícios da demonização colonial de sua fé? E a resposta a essa pergunta é mais importante do que parece. Pode ser simples coincidência o atentado ser no dia de Iansã sincretizada como a divindade católica branca, Santa Bárbara. 

Ou não. 

Não foi justamente Mãe Stella que criticou abertamente o sincretismo religioso como prática racista no manifesto "Santa Bárbara não é Iansã", em 1983, assinado por outras Ialorixás históricas do Candomblé da Bahia, como Mãe Menininha do Gantois e Olga de Alaketu? Essas grandes Ialorixás estavam lutando contra o embranquecimento que é um resquício da demonização e apagamento da africanidade contida no Candomblé e na Umbanda, sua ramificação mais afetada. O sincretismo serve também para camuflar o ranço racial de muitos adeptos brancos dessas religiões que, precisam retirar a origem negra do culto para suportar e continuar a praticar a sua inevitável fé.  

Uma vez, um texto meu (re) afirmando que Iemanjá, uma das mais populares orixás do culto africano, era negra e gorda (lembrando que a fixação com a magreza é branca e gordofobia tem lastro histórico no racismo) e fui violentamente atacada. 

A maioria desses ataques vinham de pessoas que se identificavam como pais ou mães de santo ou adeptos da religião, e não aceitavam que o sagrado que eles cultuavam era diferente da imagem sensualizada e caucasiana que vendem por aí. Na ocasião, usei uma foto do fotógrafo Antonello Veneri que havia clicado uma bela moça negra, baiana e que me remeteu a tudo que eu sei sobre a grande Rainha do mar (do Candomblé, porque na sua origem Iorubá ela é do rio assim como Osún). 

É automático pensar em mais um ataque evangélico, já que não por acaso, esse grupo religioso atualmente são os maiores perseguidores e repressores das práticas religiosas de origem africana, tanto da Umbanda quanto do Candomblé. A igreja católica foi a perseguidora histórica, mas também tem sido vítima de ataques nesse momento histórico, apesar de ser em proporções muito menores que as religiões de raiz africana, mas com frequência notável e, aí sim faz sentido falar em intolerância religiosa, porque as motivações são outras e estão mais no campo da disputa pela hegemonia ou pelo controle do senso comum. 

Mas é preciso investigar as disputas raciais  e as reproduções da lógica colonial que acontecem dentro dos próprios cultos, entre seus adeptos, especialmente aqueles que se recusam a entender os legados ancestrais que cultuam. Se o racismo é estruturante e sistêmico, perpassando todas as relações sociais e lugares políticos individuais e coletivos, porque a religião, que é historicamente um braço direito e direto dos sistema de opressão e dominação que se dá a partir do controle de corpos, seria um meio neutro e descontaminado das perversidades de suas práticas? 

Sabemos que o manifesto encabeçado por Mãe Stella de Oxóssi pôs à prova a sinceridade e o letramento racial de muitos lugares de culto, deixando no ar a pergunta: “como se cultua orixá essencialmente negro sendo racista?”.

E não podemos esquecer que a absorção do ranço racial também se deu na pessoa negra, deformando sua autoimagem e criando auto rejeições que não apenas se manifesta nele e por ele, mas por toda e qualquer lembrança do que ele é e de onde vêm. 

Sendo assim, é ingênuo pensar que evangélicos, que são em grande parte negros e negras, atacam as religiões de origem africana apenas por questões de divergência religiosa. Absolutamente. Eles manifestam o resultado da excelência branca no aliciamento de mentalidades pretas. 

Por isso é reducionista falar em “intolerância religiosa”, já que intolerância é um termo amplo e também problemático, que sozinho não nos dá a perspectiva, histórica e atual, da motivação dos ataques e, sem isso, como podemos pensar em uma reversão dessas dinâmicas que não caia no perigoso lugar do punitivismo? 

Além disso, os ataques que sofrem as religiões de origem africana tem muitas nuances, mas uma única origem, que é histórica, o racismo estrutural, suas diversas práticas e suas questões que permeiam questões internalizadas por pessoas de dentro e de fora da negritude, sendo que cada caso deverá ser tratado de formas diferentes, mas dentro do mesmo âmbito. 

É de extrema importância que se apure e cobre a responsabilidade e a conscientização de que ataques ao sagrado de origem negra é mais uma das perversas práticas racistas que coíbem e limitam a existência negra na sua plenitude social.  Do mesmo modo que é de extrema importância compreender que o fato desse país não ser laico conforme prega nossa Constituição, também é uma expressão do racismo. 

O Brasil não é e nem nunca foi laico porque é racista em sua formação. 

Fonte: Redação Nós
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