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Nossos ministros pretos e o sonho dos nossos ancestrais

O que podemos esperar desses ministérios diante da necessidade da transformação social que sonhamos?

22 dez 2022 - 17h53
(atualizado às 18h02)
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Anielle Franco, futura ministra de Igualdade Racial
Anielle Franco, futura ministra de Igualdade Racial
Foto: Iara Morselli/ESTADÃO / Estadão

‘O mundo dá muitas voltas’ é um ditado bastante conhecido e propagado. Conheço e ouço desde pequena. Em um país tão problemático como o Brasil, essas voltas não costumam ser eficientes em mudar as coisas ou recolocá-las no seu devido lugar. 

Mas de vez em quando, como que num capricho dos Orixás, Deuses, entidades, espiritualidade, ou seja lá o que for, o ditado funciona.

Vejamos:

Na noite de 14 de março de 2018, toda e qualquer pessoa que tem algum vestígio de humanidade pulsando dentro de si, recebeu a notícia (quase em tempo real) do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco com um misto de indignação, medo, desespero e desesperança. E muita dor. Era um momento do apogeu midiático do feminismo negro brasileiro, do qual Marielle era uma das mais potentes e ativas frentes políticas. Mulher negra, cria da Maré, lgbt, entre outras características que desafinam o coro dos contentes que desfrutam dos privilégios históricos. 

Aquela que disse em alto e bom tom que “não admitia ser interrompida” em um plenário fedendo a opressão de toda espécie, aparentemente tinha sido calada nos seus mais legítimos sonhos de um Brasil decente para os que estiveram sempre às margens da história. 

Bom, se não podemos afirmar quem foi o mandante e o executor do crime, ao menos podemos guardar uma certeza impronunciável, lá no fundo da nossa revolta, amparados pelas mais descaradas demonstrações públicas de apodrecimento de caráter e de alma que presenciamos nos anos que se seguiram ao brutal assassinato. Como bem nos ensinaram os sábios e perspicazes pretos velhos, entidades da Umbanda que representam nossa ancestralidade africana, o pensamento, diferente do corpo, não pode ser escravizado. 

Saltamos para o indefinido e indefinível ano de 2022. 

Lula, o empático ex-presidente símbolo dos anos mais esperançosos para as minorias sociais, guardadas as devidas e merecidas críticas aos seus erros perigosos e, justamente pelo seu inegável vínculo com a massa popular trabalhadora, tão perseguido, foi reeleito para seu terceiro e mais difícil mandato. 

Novamente a mistura de sentimentos: euforia, alívio, dúvidas, esperançar renovado, etc. 

O mundo deu voltas. 

E dessa vez, favorável, até o momento. 

Só que mais um ditado é posto à prova:

“Não existe almoço grátis!”

Se a Frente foi ampla na junção de forças políticas se articulando por um bem maior, não poderia ser ampla na hora de cobrar o “almoço”. 

Na dança tensa e descoordenada dos ministérios, muitas escolhas não agradam. Principalmente a falta de proporcionalidade e paridade racial, de gênero e de classe.

Mas aqui, novamente as voltas que o mundo dá, seja pela velocidade ou pelos ventiladores que tentam esfriar os ânimos dos que estão cobrando a conta do " almoço", temos uma brisa. Uma não. Algumas. Mulheres importantes e qualificadas em ministérios importantes, como Nísia  na Saúde e Luciana na Tecnologia, por exemplo. 

Mas a cereja do bolo, ou o “plot twist” mais impactante, sem dúvida é a vingança de Marielle, Anielle Franco, à frente da Igualdade Racial. 

Não seria de bom tom chamar de vingança, uma vez que Marielle pode ter sonhado com isso e preparado a irmã para altos vôos políticos e/ou acadêmicos. Já ouvimos a própria Anielle dizendo em entrevistas que Marielle não foi apenas inspiração, foi parte ativa no incentivo aos estudos e a carreira. Mas diante de toda a lambança feita pela ala podre que infelizmente ainda manda muito no país (vamos vencê-los, sei que vamos), todo o empenho de Anielle em aproveitar as oportunidades da irmã se converte em uma vingança involuntária, porque a voz precocemente e violentamente interrompida de Marielle voltou com mais força e maior consciência do seu poder de mudança. 

O que mais sustentou as esperanças das militâncias depois do assassinato da vereadora foi se posicionar repetindo a exaustão “somos sementes de Marielle”. 

E todas eram e são ainda. 

Mas a semente “natural” e de direito hereditário germinou com maturidade e postura que a levaram não ao lugar de substituta, mas sim de força similar e equivalente, que construiu seu espaço e vai escrever seu nome na história, tal qual a irmã mas, com um final feliz e os olhos da proteção pública mais atentos, pois já sabem que aa forças contrárias não tem limites. 

As outras escolhas negras, como o jurista e professor Silvio Almeida e a cantora e gestora cultural Margareth Menezes não são menos importantes ocupando as pastas de Direitos Humanos e da Cultura, respectivamente. Ao contrário. Ambos com trajetória irretocável e carisma público consolidado tem muito a oferecer. 

Margareth já vêm forte entre contestações infundadas e especulações pueris, provando que mulheres negras são mesmo a base da pirâmide até na distribuição do respeito público, já que de acordo com o que foi ventilado na imprensa, ela foi a terceira escolha, quando na verdade merecia ser a única e primeira, pela idoneidade e pela injustiça de, graças ao racismo, nunca ter ocupado o lugar oficial de rainha do carnaval da cidade mais preta do mundo, conforme lhe era de direito. Isso ninguém disse, ninguém notou. Como sempre, mulheres negras são as únicas que têm sua capacidade e méritos colocados em dúvida, mesmo depois de uma das piores presenças da história em um ministério, como é o caso de seu antecessor Mário Frias. 

Já Silvio Almeida era unanimidade há tempos e não por acaso. Brilhante acadêmico, sociável e muito bem articulado, traçou sua trajetória com humildade suficiente e ampla colaboração com os mais variados movimentos sociais, alcançando respeito e admiração por onde passou, seja pela inteligência ou pela postura humana, daqueles que trata com o mesmo respeito e consideração o dono da multinacional e a pessoa que serve o cafezinho.

O que podemos esperar desses ministérios que, apesar de estarem longe, muito longe da ideal representatividade, têm qualidade de sobra para interagir e conduzir pautas caras para o caminho de transformação social que sonhamos? 

Comprometimento e seriedade, acima de qualquer divergência ideológica e política. 

Mas devemos desde já festejar sim, pois eles representam parte simbólica do sonho de nossos ancestrais escravizados, violentados e depreciados ao longo da história. E devemos desejar ardentemente que sejam fortes o bastante para aguentar o tranco quando a vida prática do cotidiano da política, cheia das velhas raposas brancas históricas de dentro e de fora dessa arena enferrujada começarem a ranger os dentes.

Fonte: Redação Nós
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