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"Eles Clonaram Tyrone" e a autocrítica negra necessária

Filme da Netflix traz representatividade negra através da crítica racial e do humor político

30 set 2023 - 05h00
(atualizado em 26/10/2023 às 09h07)
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"Eles Clonaram Tyrone" une afro-surrealismo e blaxploitation
"Eles Clonaram Tyrone" une afro-surrealismo e blaxploitation
Foto: Divulgação/Netflix

Imagina um encontro entre o afro-surrealismo e a blaxploitation pelas mãos de um jovem e estreante diretor negro e aparentemente bem posicionado sobre os rumos silenciosos da luta negra por direitos civis em 2023. 

Imaginou? 

Então, isso é a síntese do quase despretensioso e insano “Eles Clonaram Tyrone” ("They cloned Tyrone", no original), produção disponível na Netflix, que estreou em julho deste ano. 

O filme parece inocente, mas é muito relevante sob diversos aspectos. Tanto que já fiz um diálogo entre a crítica contida aqui e o movimento de abertura etnico-cultural que se enseja na Coreia do Sul, devidamente documentado pelo boom dos Doramas/Kdramas e do Kpop. 

A crítica em "Eles Clonaram Tyrone" aparentemente se perde em meio ao surrealismo e ao choque de gerações com a blaxploitation (o movimento cinematográfico que trazia protagonismo negro e que frequentemente se inspirava nas ideologias do movimento Black Power enquanto apresentava temas de empoderamento, emancipação social, muitas vezes por vias ilegais, e conscientização; a palavra é a junção da palavra negro em inglês, ‘black’, e exploração, em inglês 'exploitation'). Mas ainda assim, para quem leva a sério a discussão racial, a pergunta é "clara": até que ponto conseguimos nos livrar dos efeitos colaterais da incontornável colonialidade cultural que assola nossas vidas permeadas pelo racismo?

O diretor é Juel Taylor, que estreia na condução de um filme, mas não é leigo nas engrenagens da sétima arte, já que veio de colaborações fundamentais em "Creed II", de 2018,  e "Space Jam; um novo legado", de 2021. 

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O encontro entre afro-surrealismo e blaxploitation se dá pelas referências de Ralph Ellison e sua obra necessária "O homem invisível", de 1952, onde o autor rompe com os estilos literários formais e extrapola os limites da realidade (branca) para mostrar a própria realidade (negra) e a blaxploitation pela maneira com que o protagonismo negro se dá, convertendo em heróis e heroína tipos que entre todos os discriminados costumam ser mais discriminados, como é o caso do traficante, da prostituta e do cafetão.

O afro-surrealismo tem aparecido com certa frequência entre os novos talentos pretos do cinema norte-americano, cujo mais popular é Jordan Peel, diretor de "Corra!", "Nope" e "Nós" e na série Atlanta (2016).

Já a blaxploitation, por ser mais polêmica, sobretudo no que se refere à questão de gênero, permanece mais na memória cultural do que nas práticas artísticas. De qualquer forma, ambas estão muito presentes nesse trabalho do Juel Taylor, que também tem forte flerte com a comédia e tem sido tratado pela imprensa norte-americana como um filme de ficção científica. 

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O filme começa com o traficante Fontaine (equilibrada e convincente atuação do competente John Boyega) fazendo a ronda por um bairro afro-americano carente, em que as pessoas usam indiscriminadamente símbolos da cultura negra-urbana, como bebida tipo refrigerante alcoólico, frango frito e alisantes que prometem o liso perfeito. Ele, então, vai cobrar um valor devido pelo cafetão decadente e canastrão Slick Charles (Jamie Foxx perfeito aqui). Ao sair, encontra a prostituta Yo-Yo (vivida pela linda e hilária Teyonah Parris). Fontaine é abatido a tiros por um rival e ambos o veem morto. No dia seguinte, ele é visto pelo cafetão e pela prostituta, surpreendentemente, vivíssimo da silva, para espanto dos dois e dele próprio. Eles começam uma investigação sobre o intrigante ocorrido e descobrem um esquema de clonagem de pessoas negras do bairro por uma empresa branca, que os domina completamente, usando justamente os símbolos da cultura negra-urbana que são tão populares entre a negritude.

Embora permeado por absurdos e muito humor, a crítica sobre os modos de cooptação e manipulação das massas negras é contundente e corajosa, sobretudo porque mexer nesse vespeiro é mexer com uma espécie de hipnose (ou neurose) coletiva naturalizada e até exaltada, que conta até com a defesa de muitas pessoas negras que se beneficiam com essa dinâmica e insistem em dizer que é um ganho coletivo. 

Por aqui pode-se dizer que é uma releitura das armadilhas do “pretos no topo” ou do “a favela venceu”, que na verdade se vale da ascensão de negros e negras únicos, escolhidos a dedo e com todo cuidado para que corroborem a narrativa branca de aliados, enquanto pegam de jeito a mente da negritude sem letramento racial que não consegue enxergar que esse é o modo mais letal e silencioso de genocídio negro. Aliás, é emblemática a cena em que uma massa de negros e negras correm para eliminar Fontaine, devidamente abduzidos, como zumbis, sob domínio de um homem branco. 

É muito corajoso da parte de Jules Taylor usar os recursos mais sofisticados da sétima arte, que é eurocêntrica ao extremo, para pautar o status atual do racismo e seus novos modus operandi, que inclusive remete ao uso dos sub-opressores, conceito cunhado por Paulo Freire, cujo ponto nevrálgico é a dominação (ou colonialidade) cultural. 

De qualquer forma, vale muito a pena para toda e qualquer pessoa negra se repensar a partir dos apontamentos de Fontaine, especialmente nesse momento de total descontinuidade da crítica racial tão necessária ao letramento do povo negro e branco, que é o único caminho possível para a erradicação do racismo. 

Isso começa a partir do momento que, devidamente pautado pelos interesses brancos, alguns negros passam a desmerecer e deturpar o trabalho de outros, até chegarmos em um ponto de retrocesso tamanho em que racismo reverso passa a ser aceito como narrativa que invalida toda e qualquer luta futura, afastando ainda mais a parte mais frágil da negritude do entendimento do seu lugar social e fortalecendo as práticas racistas estruturantes da sociedade. 

A crítica de Juel Taylor sequer teve espaço aqui, uma vez que contraria, de maneira muito inteligente, os clichês de militância e ri dos separatismos e apagamentos promovidos dentro do grupo dos oprimidos pela racialidade, em uma insana e perigosa disputa por visibilidade e aceitação branca.

Por mais filmes como esses que não se fazem de rogado e nos lembram que em uma sociedade marcada pelas opressões, independente das posições sociais, todos temos o que aprender e temos que rever nossas práticas e posturas, sobretudo aquelas voltadas para o que convenientemente chamamos de “os nossos”. 

“Elzas do Brasil”: histórias negras não precisam ser só de superação:
Fonte: Redação Nós
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