Conheça a seleção que dominou o futebol antes do Brasil
Antes do jogo coletivo da Espanha encantar os torcedores com seu estilo sufocante, antes de Zidane reger a França com sua maestria em campo, antes de Maradona conduzir a Argentina ao topo do mundo, antes da Holanda de Cruyff revolucionar as táticas do esporte, antes mesmo do Brasil de Pelé virar sinônimo de espetáculo, o futebol tinha um dono: a Hungria de Puskas.
Pode até parecer exagero, mas que outra coisa pode ser dita de uma equipe que, entre junho de 1950 e fevereiro de 1956, acumulou 42 vitórias, sete empates e apenas uma derrota, ficando invicta por 31 jogos consecutivos? Não bastasse isso, a Hungria ainda detém os recordes de maior número de gols (27) e melhor média (5,4) em uma única edição de Copa do Mundo. Para completar, foram 73 jogos seguidos balançando as redes ao menos uma vez, feito jamais igualado.
E o mais impressionante de tudo é pensar que um time tão incrível começou mais como um projeto político do que qualquer outra coisa. Isso porque, ao final dos anos 1940, o país europeu vivia sob o regime comunista, e o governo decidiu que uma seleção forte seria uma ótima propaganda para o país.
Montagem de um esquadrão
Claro que nada disso seria possível sem grandes jogadores, e o encarregado de juntá-los foi o técnico Gustav Sebes. Uma das primeiras medidas que o treinador adotou foi agrupar os principais jogadores do país em apenas um clube, o Honved (defensores da pátria, em húngaro). A ideia era fazer com que os atletas ganhassem entrosamento enquanto não estavam defendendo a seleção.
Assim, o goleirão Gyula Grosics, o zagueiro Gyula Lorant, o atacante Sandor Kocsis o ponta direita Laszlo Budai e o ponta esquerda Zoltán Czibor se juntaram ao volante József Bozsik e ao maestro Férenc Puskas para fazer do Honved a base da Hungria. Outros três titulares jogavam no MTK: o meia-atacante Nandor Hidegkuti, o quarto-zagueiro Jozsef Zakarias e o lateral Mihaly Lantos. O décimo primeiro membro do esquadrão era o defensor Jeno Buzanszky, do Dorogi FC.
Porém, apenas bons atletas não fazem uma equipe entrar para a história. O técnico sabia muito bem disso, e investiu em um novo plano tático. Até então, quase todas as equipes do mundo atuavam no 3-2-2-3, popularizado por Herbert Chapman quando ele comandava o Arsenal nos anos 1930.
Sebes resolveu então recuar um dos homens de frente para o meio, criando o 3-2-3-2. A mudança deixava duas opções para o zagueiro central adversário: ou ele permanecia atrás e dava liberdade para um jogador de meio da Hungria, ou ele acompanhava a movimentação e abria espaços na zaga.
A inovação foi tão bem sucedida que serviu de base para o esquema adotado pelo Brasil na Copa de 1958, o 4-2-4, e duas décadas depois ainda inspirou Rinus Michels na concepção da seleção da Holanda de 1974, que entrou para a história com o nome de Laranja Mecânica.
Para finalizar, os aspectos técnico e tático foram complementados por uma preparação física jamais realizada antes por nenhuma outra equipe. Com uma rigidez militar, os jogadores de futebol deixaram de ser apenas boleiros e começaram a ser vistos como atletas. Isso permitia aos dez homens de linha da Hungria se manter em constante movimentação e troca de posições, confundindo a marcação adversária.
Repleta de craques, com um esquema tático revolucionário e uma preparação física acima do normal. Some a todos esses itens a adoção do revolucionário conceito de aquecimento, que dava aos húngaros a vantagem de jogar os minutos iniciais de uma partida contra um adversário "frio", e você terá os motivos que levaram um time de futebol a se tornar imbatível por quatro anos, ou 31 partidas consecutivas.
Caminho do ouro
A série invicta da Hungria começou em 4 de junho de 1950, com uma vitória por 5 a 2 sobre a Polônia em um amistoso. Apesar de triunfos como 12 a 0 sobre a Albânia, 6 a 0 sobre a Polônia e 5 a 1 sobre a Alemanha Oriental, havia muita desconfiança com relação à qualidade do time, pois devido ao regime comunista ele só enfrentava países ligados à União Soviética.
Assim, o grande desafio para o país seria a Olimpíada de Helsinki, em 1952, que colocaria Puskas e companhia em confronto com as principais seleções do planeta. Na estreia, contra a Romênia, Czibor e Kocsis comandaram a apertada vitória por 2 a 1. A vítima seguinte foi a Itália, que caiu por 3 a 0. A economia de gols acabou nas quartas de final, quando o time quase inteiro foi às redes na goleada por 7 a 1 sobre a Turquia.
Na semifinal, foi a vez da Suécia tentar anotar a placa após levar uma surra de 6 a 0. A consagração veio quando Puskas e Czibor marcaram diante da Iugoslávia e garantiram a medalha de ouro inédita para o país. Foram cinco jogos, cinco vitórias, vinte gols marcados e apenas dois sofridos. Não havia mais dúvida, a Hungria era a seleção a ser batida, e os ingleses, inventores do futebol, resolveram fazer o desafio. Estava marcado o amistoso que entraria para a história com o nome de "Jogo do Século".
O jogo do século
Em 90 anos de história, a única derrota da Inglaterra em casa havia sido em 1949 para a Irlanda, que utilizava em sua maioria jogadores que atuavam no campeonato inglês. Por esse motivo, os ingleses ainda se consideravam invictos contra "estrangeiros". Dez dias antes do lendário duelo em Wembley, a Hungria jogou mal e empatou por 2 a 2 contra a Suécia.
Billy Wright, capitão da Inglaterra e considerado um dos grandes zagueiros da história, assistiu ao jogo e deixou o estádio cheio de confiança, declarando que o país ganharia dos comunistas sem grandes problemas. Os jornais ingleses, então, passaram a escrever manchetes afirmando que o amistoso decidiria qual era a melhor equipe do mundo.
Em 25 de novembro de 1953, a Hungria precisou de apenas 42 segundos para mostrar sua superioridade. Este foi o tempo que levou entre o apito inicial e o gol de Hidegkuti. Sewell ainda empatou, mas os donos da casa iriam para o vestiário perdendo por 4 a 2, com direito a um gol antológico de Puskas, que deu um lindo corte no zagueiro antes de estufar as redes.
Ao final da partida, os 105 mil espectadores olhavam atônitos para o placar que marcava 6 a 3 para os visitantes. Mais do que isso, foram 35 chutes a gol contra apenas cinco dos donos da casa, e o último gol húngaro foi uma pintura: dez passes em sequência até a finalização de sem-pulo de Hidegkuti.
Sir Bobby Robson, que treinou a seleção inglesa nos anos 1980, certa vez deu a seguinte declaração sobre o duelo, que acompanhou quando tinha 20 anos. "Jogando em Wembley, nós éramos os mestres, esperávamos demolir aquela equipe. Mas nos deparamos com um estilo de jogo que nunca tínhamos visto. Eles eram de Marte, todos eram jogadores fantásticos."
Único jogador ainda vivo ao lado do goleiro Grosics, o defensor húngaro Buzanski completou: "os ingleses jamais haviam perdido no estádio deles em 90 anos. Perderam para nós, em 90 minutos." Inconformados com a derrota, os inventores do futebol pediram uma revanche, que foi disputada 23 de maio do ano seguinte, em Budapeste. O resultado foi a maior derrota da história da Inglaterra até hoje: 7 a 1.
Uma batalha e um milagre
A impressionante goleada sobre os ingleses foi o último jogo dos Magiares Mágicos antes do início da Copa do Mundo de 1954, realizada na Suíça. E a equipe de Puskas manteve o embalo, goleando a Coreia do Sul por 9 a 0 na estreia.
Na segunda partida, o adversário era a Alemanha Ocidental, que já estava classificada para a fase seguinte por também ter vencido a partida anterior. Sendo assim, o técnico alemão escalou uma equipe reserva, e amargou a esperada derrota por 8 a 3. Apesar do massacre, Puskas levou uma entrada violenta, se machucou e ficou fora das partidas seguintes. O gênio só voltaria na decisão, e ainda assim em condições físicas questionáveis.
Nas quartas de final a vítima foi justamente o Brasil. Nem mesmo craques como Didi, Djalma Santos e Nilton Santos foram páreo para o incrível time europeu. Relatos da época afirmam que um problema na transmissão impediu os brasileiros de acompanharem pelo rádio o início da partida. Dez minutos depois, quando tudo foi normalizado, o que se ouvia era o desespero dos locutores que anunciavam que o país já perdia por 2 a 0. Djalma Santos, de pênalti, descontou para o Brasil, mas uma nova penalidade ampliou a vantagem adversária.
O Brasil ainda voltou a diminuir com um belo gol de Julinho, porém Kocsis fechou o placar em 4 a 2. O que se viu então foi uma verdadeira guerra campal iniciada pela seleção verde e amarela. Nilton Santos e Humberto foram expulsos, Pinheiro trocou garrafadas com Puskas e o técnico Zezé Moreira chutou o treinador húngaro Gustav Sebes. O episódio ficou conhecido como a "batalha de Berna", e o Brasil carregaria o rótulo de seleção violenta até encantar o planeta com o futebol apresentado por Garrincha e Pelé na Copa seguinte.
Atual campeão do mundo, o Uruguai até dificultou a vida da Hungria na semifinal, empatando o jogo por 2 a 2 no tempo normal. Na prorrogação, porém, os europeus mais uma vez fizeram valer seu preparo físico, venceram com dois gols de Kocsis e se classificaram à final para enfrentar justamente a Alemanha, que havia sido derrotada por 8 a 3 na primeira fase.
Em uma cena do filme "O milagre de Berna", que conta a história do primeiro título mundial da Alemanha, o capitão Fritz Walter, na véspera da decisão, afirma que a única chance de o país derrotar a Hungria, invicta há 31 jogos, era com uma tempestade durante a partida. Na manhã de 4 de julho de 1954, o tempo fechado animou a equipe, que contava com chuteiras especialmente desenvolvidas para essas condições.
Chovia forte quando o juiz deu o apito inicial, e o que se viu, mais uma vez, foi um massacre do time de Puskas nos primeiros minutos. Aproveitando-se do aquecimento, o próprio craque abriu o placar aos 6min, e Czibor ampliou aos 8min. Os germânicos, porém, descontaram com Morlock dois minutos depois, e empataram com Rahm aos 18min. Na sequência, aconteceu um festival de gols perdidos por ambas as equipes, especialmente a Hungria, que esbarrava na grande atuação do goleiro Turek.
Aos 39min do segundo tempo, Rahm fez o gol o título para a Alemanha. Puskas ainda teria um gol controversamente anulado quando faltavam dois minutos para o fim. Em 2010, o estudo "Doping na Alemanha", conduzido pela Universidade de Leipzig e patrocinado pelo Comitê Olímpico Alemão, apontou que os jogadores do país tomaram metanfetamina antes da partida acreditando que era vitamina C. Com doping ou não, o fato é que o time de Fritz Walter conseguiu um milagre à época: quebrou a invencibilidade húngara e ganhou a Copa do Mundo de 1954.
Apesar da derrota, a Hungria continuou a dominar o futebol mundial até 1956, período no qual disputou mais 19 partidas, venceu 16 e empatou três. A revolução que estourou no país em outubro daquele ano desintegrou a seleção e fez com que os principais craques migrassem para outras nações. Puskas, por exemplo, se naturalizou espanhol e foi para o Real Madrid para virar lenda. Kocsis e Czibor se transferiram para o Barcelona. Porém, o legado que os Magiares Mágicos deixaram para o futebol permanece, mesmo depois de mais de meio século.
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