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Famílias de vítimas do incêndio no Ninho do Urubu reclamam de falta de sensibilidade do Flamengo

'Sinto revolta, angústia e tristeza. O Flamengo está podre por dentro', diz mãe de Rykelmo Viana

6 fev 2020 - 08h12
(atualizado em 8/2/2020 às 09h51)
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A chuteira laranja florescente exposta na estante da sala da casa de três cômodos em Limeira, interior de São Paulo, é uma das lembranças mais carinhosas que Rosana Souza tem de seu filho Rykelmo Viana. O menino gravou o nome de sua mãe e deu a chuteira para ela como presente dias antes de morrer no incêndio de grandes proporções que atingiu o CT Ninho do Urubu e matou dez jovens entre 14 e 16 anos no dia 8 de fevereiro de 2019. "Sinto revolta, angústia, tristeza. O Flamengo tinha garantia de que poderia ter lucro com eles. Depois do que aconteceu, isso não tem mais valor", reclama Rosana, amargurada com o descaso do clube do Rio.

A maior tragédia da história do Flamengo completa um ano neste sábado ainda sem o apontamento de culpados, com poucos acordos selados entre as famílias das vítimas - três delas e o pai de Rykelmo Viana aceitaram a proposta do clube - e várias reclamações em relação ao Flamengo por falta de diálogo. O incêndio foi provocado por um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado. O fogo consumiu o contêiner onde dormiam os garotos da base.

"O que custa, com tanta contratação, indenizar essas famílias? Será que eles não têm filhos, netos? Entregamos nossos filhos saudáveis, confiando que eles seriam bem cuidados. Os meninos não são animais. Tiveram seus sonhos interrompidos. Houve negligência do Flamengo", dispara a mãe de Rykelmo.

Seu filho começou a carreira na Portuguesa Santista, em Santos. O menino habilidoso era volante e jogava com a camisa 8. No próximo dia 26, completaria 18 anos. "O Flamengo hoje é como uma fruta. Por fora, está bonita, mas por dentro está podre, e essa podridão contamina o resto", atesta a mulher, indignada.

Rosana trabalhava coletando roupas em um hospital em Limeira, mas teve de largar o serviço com o trauma provocado pela trágica morte do filho. "Na coleta de roupa, tinha de entrar em todos os lugares do hospital, inclusive na ala de queimados. Meu filho acabou morrendo carbonizado. Não pude nem olhar o caixão dele, isso me traumatizou", explica Rosana, que tem mais duas filhas, uma delas deficiente. Ela hoje está desempregada e complementa a renda fazendo trabalhos artesanais.

Rosana foi a primeira a mover uma ação judicial contra o Flamengo. Ela pede na Justiça R$ 6,9 milhões, sendo R$ 3 milhões por danos morais e R$ 3,9 milhões de pensão, além da anulação do acordo do clube com o pai de Rykelmo, José Lopes Viana, de quem é divorciada.

O segundo a processar o clube rubro-negro será Cristiano Esmério, pai do ex-goleiro Christian. O advogado de Cristiano, Márcio Costa, confirmou ao Estado que finaliza os últimos detalhes e documentações para entrar com a ação judicial nesta semana ainda, quando se dará um ano do episódio. O valor pedido gira em torno de R$ 9 milhões, incluindo indenização e pensão, e foi calculado com base na carreira dos últimos goleiros revelados pelo time rubro-negro - Júlio César, Marcelo Lomba, Paulo Vitor e César.

"O que me revolta é a falta de respeito e sensibilidade com nós, familiares, que perdemos nossos filhos por causa da irresponsabilidade do clube", diz Cristiano, que é organizador de eventos. Seu filho era um dos mais talentoso das promessas flamenguistas. O jovem, que morreu aos 15 anos, era observado por clubes europeus e vinha sendo convocado para as seleções de base do Brasil.

A rotina de dor e sofrimento de Rosana e Cristiano é compartilhada por outras oito famílias, que passaram a conviver com problemas de saúde constantes. "Hoje a minha vida, da minha mulher e da minha filha é viver à base de remédios. Remédio para controlar a pressão, a glicose, o colesterol, para dormir e aliviar a depressão", relata Wedson Cândido, pai de Pablo Henrique, que morreu aos 14 anos. O pai do garoto era caminhoneiro e teve de largar o trabalho, assim como a mãe, Sarah Cristina, que era cozinheira em um asilo. Os dois moram em Oliveira, pequena cidade de Minas Gerais localizada a 150 quilômetros de Belo Horizonte. A família tem forte ligação com o futebol, já que o pai, o tio e o avô de Pablo foram jogadores. Hoje, porém, jogar bola ou até mesmo assistir a um jogo não é mais prazeroso.

DOR DOBRADA

O calvário de Marília Barros é ainda maior, de modo que o incêndio que vitimou seu filho no CT do Flamengo não é a primeira tragédia com a qual tem de lidar, e conviver. Ela ficou viúva depois que seu marido foi assassinado a tiros. Dez anos depois, perdeu seu único filho, Arthur Vinicius, batizado com esse nome em homenagem ao maior ídolo da história do Flamengo, Arthur Antunes Coimbra, o Zico. "Não tenho mais um telefonema, um abraço do meu filho. O que ficaram foram as recordações boas, as lembranças, mas é uma dor que a gente sabe que nunca mais vai passar. Nunca mais vou ser feliz novamente. Por que eles não resolvem essa pendência, para acabar com isso de uma vez?", questiona Marília, que tatuou no braço esquerdo a imagem do filho vestido com a camisa do Flamengo.

Arthur faria 15 anos no dia em que foi enterrado em Volta Redonda, sua cidade natal. Foi para comemorar o aniversário do colega que vários meninos dormiram na concentração do clube naquela noite. "Lembro que quando fui falar com o diretor da base, chorei. Eu disse que tinha medo de levar meu único filho para uma cidade violenta como o Rio. Essa era minha única preocupação. E olha só, no lugar onde meu filho deveria estar mais seguro foi onde ele perdeu a vida", recorda Marília. A mãe de Arthur desenvolveu ansiedade, teve alguns problemas de saúde e hoje se apega à fé em Deus para atenuar a angústia.

INSENSIBILIDADE

A principal reclamação das famílias no caso é quanto à inexistência de diálogo do Flamengo. Eles alegam que o clube só se mostrou presente nos dias seguintes à fatalidade. Depois disso, os dirigentes, dizem os familiares, sequer mantiveram contatos regulares. Eles entendem que falta sensibilidade por parte dos dirigentes do Flamengo. Queriam mais atenção e algum carinho.

"O que faltou dessa diretoria foi sensibilidade. Se após o acidente tivessem ido à casa de cada familiar, já estaria tudo resolvido. Queremos um abraço, nos sentir acolhidos", pontua Darlei Pisetta, pai do ex-goleiro Bernardo, morto aos 14 anos. "A gente já perdeu nosso maior bem. Mexer com essa ferida é difícil. Até tentei uma aproximação, mas o clube não conversa com as famílias", acrescenta o gerente de compras, que reside em Indaial-SC.

A fala de Darlei é corroborada por Alba Valéria, mãe de Jorge Eduardo, que morreu aos 15 anos no Ninho. "Não tenho nenhum contato com eles do Flamengo mais. Nunca recebemos um telefonema. Do presidente e dessa diretoria do Flamengo, esperamos justiça e que eles sejam mais humanos", opina a auxiliar de serviços de educação básica, moradora de Além Paraíba-MG.

O defensor público do Rio, Eduardo Chow, também criticou a conduta flamenguista nesses 12 meses pós-tragédia. "É uma situação desigual, mesmo com as instituições públicas presentes, porque o Flamengo tem toda a estrutura e as famílias não. O clube tem uma postura de não dialogar. Não compreendemos as razões dessa postura intransigente", ressalta. A Defensoria Pública do Rio representa a família de Samuel Rosa e também atua no caso na ação coletiva.

Procurado pelo Estado, o Flamengo não quis comentar sobre o assunto. O clube preferiu se pronunciar a respeito das negociações por meio de um vídeo divulgado pela Fla TV, a tevê do clube, em que os dirigentes rubro-negros responderam perguntas previamente selecionadas. "O clube esteve sempre aberto a negociações, mas, depois de muito discutir internamente, nós estabelecemos um teto. Nós estamos dispostos a dentro desse teto discutirmos com as famílias, tentarmos adaptar a cada necessidade específica de família, uma forma de atendê-los dentro daquele teto estabelecido pelo clube", afirmou o presidente Rodrigo Landim, na ocasião.

"Esse valor que nós oferecemos, três famílias e meia aceitaram. Não podemos tratar a tragédia de uma forma para uma família e de outra forma para outra família. O nosso valor oferecido, que nós consideramos satisfatório, e três famílias e meia também consideraram, é a nossa oferta. A gente tem um limite", disse o vice-jurídico, Rodrigo Dunshee.

Estadão
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