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Opinião: Nunca foi “dom” 

5 mai 2022 - 01h00
(atualizado em 7/5/2022 às 12h01)
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Foto: Pixabay

Denise passou em primeiro lugar para medicina, porque é uma garota esforçada e estudou muito. Caio assumiu a diretoria financeira de uma grande empresa, depois de anos de esforço e dedicação. Paula acabou de realizar com sucesso uma cirurgia de alto risco em uma criança, e toda sua experiência e da equipe garantiram isso. Gael fez uma pintura ultra realista na lateral de um grande edifício na Paulista, pois o resultado final se deve ao dom que ele tem e mais nada.

Se você quiser insultar uma pessoa criativa basta dizer que ela tem “dom”, sem considerar o estudo, a pesquisa, as noites passadas em claro fazendo testes e experimentos para que o seu trabalho saia perfeito e, atribuir o esforço e dedicação, por exemplo, ao paciente “salvo por Deus”, substituindo o esforço e a dedicação humana pela magia ou vontade divina

Se você acha que estou exagerando, aqui estão alguns exemplos: antes de fazer uma simples ilustração de um astronauta no espaço, antes de riscar o primeiro traço, o desenhista faz um intenso trabalho de pesquisa.

Pesquisa se na gravidade zero o cabelo flutua ou permanece descansado sobre a cabeça, qual o tecido usado no traje de um astronauta, como ele é e quais os equipamentos que ele utiliza e ao fundo no espaço, quais estrelas irão aparecer. 

O artista vai atrás dessas respostas para fazer um desenho perfeito, com a sua visão sobre a realidade.

Se vamos filmar uma cena de época com Mozart tocando em um salão, serão pesquisadas as roupas daquele período e se elas estão de acordo com a época do ano, com o piano igual ao usado pelo compositor, as falas com seus sotaques e terminologias, se a iluminação era por velas, candelabros ou tochas, o tipo de decoração utilizado, móveis, adornos. Uma gama enorme de detalhes a serem checados e providenciados antes das filmagens começarem.

Conseguem entender que nada, nada vem do ar, ou brota como um cogumelo da noite para o dia?

Todo artista, escritor, desenhista, designer precisa estudar não somente técnicas e ferramentas, mas também química, física, matemática, história, geografia, política, letras, religião, biologia, culinária, teologia, esportes e tudo aquilo que for necessário para lhe dar elementos suficientes para realizar seu trabalho.

Se formos descuidados com esses detalhes, antes que o diabo pisque o olho o primeiro dedo já surge apontando o erro. Caso contrário, ouvimos como prêmio o “você tem o dom” sobressaindo por cima de nossa olheiras, latas vazias de energético e garrafas de café forte consumidas durante o processo.

Todo esse processo nos faz ler, revirar e descobrir coisas que não esperávamos encontrar e que anotamos e guardamos como referência para criar o futuro, cidades, e criaturas que ainda não existem. Este “meio ambiente” não é de exatas, mas é de transformar essas exatas em ferramentas aplicáveis para todos.

Enquanto persistir a romantização do esforço artístico como algo divino, uma “graça” possuída por um grupo seleto de seres humanos, continuaremos a nos inferiorizar, achando que não somos capazes de criar algo que faça os olhos brilharem ou que traga inspiração e harmonia para as pessoas.

O escritor inglês Neil Gaiman certa vez escreveu: “Andei fazendo uma lista de tudo que não ensinam na escola: não ensinam a amar, não ensinam a ser famoso, não ensinam a ser rico ou pobre, não ensinam a se afastar de alguém que você não ama mais, não ensinam a saber o que se passa na cabeça dos outros, não ensinam o que dizer a alguém moribundo, não ensinam nada que valha a pena saber."

Nunca foi dom! Nunca!

(*) Nikki Nixon é especialista em Processos Criativos, palestrante e fundador da Deuses e Monstros – Escola de Artes.

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