'O Brasil ainda não entendeu a dimensão do problema', alerta Carlos Nobre sobre crise climática
Segundo o pesquisador, o impacto do calor extremo sobre a produtividade agrícola, urbana e energética é subestimado e exige adaptação urgente
O impacto da crise ambiental sobre a economia segue sendo subestimado, mesmo diante de prejuízos crescentes no campo, nas cidades e na geração de energia, avalia o climatologista Carlos Nobre, referência internacional em mudanças climáticas. Para ele, culturas como arroz e trigo, que não toleram temperaturas elevadas, já enfrentam risco de perda de produtividade em várias regiões do Brasil. Frutas de clima frio, como pêra e maçã, cuja produção hoje se concentra no Sul do País, também podem desaparecer do mapa agrícola nacional até 2050.
"Algumas culturas já migraram para o Sul, como pera e maçã, que precisam de clima frio. Mas até mesmo essas regiões, como Santa Catarina ou o planalto do Rio Grande do Sul, podem deixar de ser adequadas. Com mais de 2ºC de aumento até 2050, essas frutas terão de ser produzidas fora do Brasil", afirma o pesquisador.
Com longa trajetória na diplomacia científica internacional, Nobre ajudou a criar o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e foi conselheiro científico e porta-voz da urgência climática durante a COP-30.
Apesar de avaliar que a conferência desapontou ao esbarrar na falta de consenso sobre temas centrais, como o fim do uso dos combustíveis fósseis, ele diz acreditar que é preciso manter o otimismo em relação à próxima COP, marcada para 2025, na Turquia. Segundo o pesquisador, há chance de convencer parte dos países que hoje resistem a avanços nas negociações. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o senhor explicaria a relação entre o aumento das temperaturas e a queda de produtividade?
Carlos Nobre - Há milhões de trabalhadores da construção, agricultura, limpeza e outros setores que ficam muito expostos. Não trabalham em um local com ar-condicionado. Durante ondas de calor, a produtividade cai muito, além de trazer risco para a vida. Em muitos casos, será necessário mudar os horários de trabalho: começar bem cedo, voltar só no fim da tarde, como já fazem populações indígenas do Deserto do Saara, que há milhares de anos trabalham no início da manhã e da noite, protegendo-se do calor extremo no restante do dia. É algo que talvez precisemos adotar também no Brasil.
No caso específico do Brasil, que combina alta informalidade e trabalho a céu aberto, como mensurar o peso real que esse calor pode impor à economia nacional?
Nobre - Estamos batendo recordes globais de temperatura e ondas de calor, especialmente nos últimos anos. Em muitos lugares, os termômetros sobem 4ºC ou 5ºC acima do normal. O Brasil, como país tropical, tem sistemas agrícolas muito vulneráveis a esse cenário e a produtividade já está despencando. Em 2024, tivemos a maior seca da história na Amazônia e um evento muito severo no Cerrado, o que provocou quebra recorde nas safras de várias culturas. Em algumas, especialmente na soja, a perda superou 30% no ano passado. Isso é resultado da combinação entre ondas de calor e secas severas. Não há dúvida de que essa interação está derrubando a produtividade da agricultura brasileira.
Existe a possibilidade de culturas deixarem de ser viáveis no Brasil?
Nobre - Sem dúvida. Arroz, trigo e outras culturas que não toleram altas temperaturas correm risco. Se o aquecimento global continuar, veremos regiões com aumento de até 5ºC ou 6ºC no verão. Algumas culturas já migraram para o Sul, como pera e maçã, que precisam de clima frio. Mas até mesmo essas regiões, como Santa Catarina ou o planalto do Rio Grande do Sul, podem deixar de ser adequadas. Com mais de 2ºC de aumento até 2050, essas frutas terão de ser produzidas fora do Brasil.
Quais setores da economia já registram perdas mensuráveis por causa do calor extremo?
Nobre - O calor extremo, quase sempre associado com a seca, tem causado impactos enormes. Em 2024, os recordes de temperatura que tivemos geraram prejuízos econômicos expressivos. Precisamos investir em adaptação, como a agricultura e pecuária regenerativas, que mantêm a vegetação nativa e reduzem a temperatura local, além de trazer benefícios como aumento de polinizadores. Atualmente, menos de 15% de todas as fazendas pecuárias no Brasil adotaram essa transição. Além do agronegócio, o setor energético também tem sido fortemente afetado. O Brasil gera 85% de sua energia por meio de fontes renováveis, sendo 75% de hidrelétricas. Mas as secas provocadas pelas ondas de calor reduzem o nível dos reservatórios e comprometem a geração. Isso obriga o uso de termelétricas, mais caras e poluentes.
Estudos como o Lancet Countdown 2025 estimam bilhões de horas de trabalho perdidas por causa do calor. O Brasil está subestimando esse impacto econômico?
Nobre - Sem dúvida. O País ainda não entendeu a dimensão do problema. Essas ondas de calor reduzem a capacidade de trabalho, provocam doenças e geram perdas econômicas graves que ainda não estão sendo devidamente contabilizadas, nem mesmo na agricultura, que já sente o impacto direto.
Se os impactos são tão evidentes, por que não conseguimos avançar nas metas de redução de temperatura?
Nobre - Porque já emitimos tanto gás carbônico que, mesmo zerando as emissões hoje, a temperatura continuará subindo. O gás carbônico permanece cerca de 150 anos na atmosfera, o que impõe uma inércia ao sistema. Mesmo com emissões líquidas zero até 2045, iremos chegar em 1,7ºC, e só com remoção ativa de carbono seria possível voltar a 1,5ºC após 2065. O problema é que não estamos caminhando nessa direção, seguimos rumo a um cenário muito perigoso, com risco de superar 2,5ºC até 2050.
Como o senhor avalia a COP-30?
Nobre - A expectativa era de que fosse a COP mais importante de todas, com metas para zerar o desmatamento até 2030 e eliminar os combustíveis fósseis até 2040 ou 2045. Mas muitos países não concordaram. O Brasil era totalmente favorável, mas faltou consenso. A conferência acabou não avançando nesse sentido. O presidente da COP, o embaixador André Corrêa do Lago, segue responsável pelas negociações, inclusive na COP-31, na Turquia. Ele prometeu trabalhar intensamente para reverter esse cenário. Temos de ter pelo menos algum otimismo de que vamos conseguir realmente convencer até lá a maioria dos países que foi contra agora.
O que pode ser feito para mitigar os efeitos do calor sobre o trabalho no Brasil?
Nobre - Mesmo zerando as emissões hoje, a temperatura vai continuar subindo por décadas. Já iremos ultrapassar 1,5ºC nos próximos cinco a dez anos. E se não reduzirmos drasticamente as emissões, poderemos passar de 2,5ºC até 2050. Isso exige uma adaptação em larga escala. No campo, precisamos de agricultura e pecuária regenerativas. Nas cidades, é preciso restauração florestal urbana, vegetação nos telhados, mudanças de cultura urbana, como em Singapura. Hoje, só 22% das residências brasileiras têm ar-condicionado, de modo que os mais vulneráveis estão mais desprotegidos.
Nas eleições do ano que vem, que tipo de compromisso deveria ser cobrado dos candidatos com relação à crise climática?
Nobre - O que está acontecendo no mundo inteiro é o aumento do número de políticos negacionistas sendo eleitos. Não é só nos Estados Unidos e na Argentina. O Brasil não pode seguir esse caminho. Não importa a ideologia, direita, centro ou esquerda: não podemos eleger políticos populistas que ignoram os riscos da emergência climática. Esses líderes não fazem nada para proteger a população nem para tornar a economia mais resiliente. Votem em quem quiserem, mas não votem em quem nega o problema. (Com reportagem de Gabriel Gonçalves, João Bitencourt, Letícia Correia, Mirielle Carvalho e Rafael Sotero).
15º Curso Estadão/Broadcast de Jornalismo Econômico Coordenação e edição: Carla Miranda e Simone Cavalcanti; Equipe: Victor Hugo Mendes, Marisa Oliveira e Eliane Damaceno