Como o potencial de reciclagem transformou o jeans no 'alumínio dos têxteis' para grandes varejistas
Com capacidade de transformação sem perder integridade, o chamado 'jeans circular' entrou na mira do mercado têxtil, mas ainda enfrenta limitações para crescer no País
De forma voluntária ou em troca por desconto, um cliente leva sua calça jeans usada até uma loja de roupas e deposita a peça em uma caixa. Ela é coletada, processada e vira fios de algodão para a confeccionar novas peças, que voltam à loja para serem adquiridas por novos consumidores.
O movimento é um exemplo do chamado jeans circular, que busca aumentar a utilidade do material que seria descartado ou ficaria em desuso, inserindo novamente o tecido na cadeia produtiva. No Brasil, esse processo vem ganhando espaço, com grandes varejistas de moda fazendo anúncios relacionados ao jeans circular, quase em sincronia.
Em setembro, a Riachuelo levou às lojas a sua maior coleção de jeans reciclado, com a utilização de quase 10 toneladas de aparas do tecido. No Grupo Renner, a Youcom lançou sua primeira coleção de jeans circular tingido na cor preta. Já a C&A anunciou nova coleção com jeans circular nas lojas para esta semana, chegando ao total de 50 mil peças neste ano.
Uma das razões que explica a escolha do jeans para a reciclagem está relacionada a questões técnicas, segundo profissionais ouvidos pelo Estadão. Eles explicam que o jeans tem altíssima reciclabilidade para a indústria têxtil, sem perder sua integridade. Em termos comparativos, a resistência da fibra é semelhante ao que o alumínio significa para a reciclagem na metalurgia.
As peças são identificadas nas etiquetas como jeans circular, mas não há diferenças de qualidade em relação às demais peças, explica a gerente sênior de ESG da C&A, Cyntia Kasai. Desde o início das fabricação dessas peças, ela percebe que a cadeia vem conseguindo evoluir na qualidade do material entregue. A evolução também se deu na possibilidade de ofertas de jeans na cor off-white, em vez de tecidos já tingidos.
"As primeiras cargas de fio tinham nozinhos, eram um pouco mais grossas, e você conseguia perceber um pouco dessas irregularidades no produto final. Viemos em um trabalho muito forte de inovação, para ter cada vez fios mais finos e que trouxessem um acabamento mais coeso."
O volume arrecadado por meio da estratégia foi usado na primeira coleção de jeans circular tingido de preto da marca, cujo total de unidades não foi aberto pela empresa. A companhia considerou o tingimento um grande avanço, diante das restrições técnicas que dificultam obter diferentes cores de fibra reciclada já tingida de azul. O processo envolveu um ano de desenvolvimento e de testes de qualidade e durabilidade, e, segundo o diretor de sustentabilidade da Renner, Eduardo Ferlauto, ainda possui limitações.
"Esse reciclado vem a partir de uma tecnologia mecânica processada no Brasil. Não temos ainda, no País, a tecnologia química, e a cor normalmente é definida pela segregação de cores de resíduos que são iguais. Então, o tingimento parte de uma base um pouco disforme. Além disso, essa tecnologia mecânica rompe a fibra, e esse rompimento também gera, em alguns casos, uma disformidade na coloração", explica.
Barreira acrescenta que as limitações ainda não permitem uma criatividade tão ampla no trato com o jeans reciclado, mas diz que o tecido já está "mais bem resolvido" do que os demais. "Pesquisamos muitos players, inclusive internacionais, e esse é um desafio da indústria. Sabemos que vamos ter que ser insistentes, seguir testando, nos unir a outros players para conseguir gerar essas propostas."
H&M: concorrência ou tendência?
O movimento sincrônico de coro ao jeans circular por grandes varejistas no Brasil ocorre em meio à chegada, em agosto deste ano, de uma grande concorrente internacional ao País, a varejista sueca de moda H&M. A companhia é conhecida por ações públicas relacionadas à sustentabilidade, incluindo coleções com jeans reciclado, e está inaugurando sua terceira loja física no Brasil nesta quinta-feira, 30, com intenção de expandir.
O foco no tecido circular seria uma estratégia competitiva? De acordo com as varejistas ouvidas pelo Estadão, não. As empresas ressaltaram que, se a H&M passar a demandar jeans reciclado de fábricas brasileiras, isso poderá ajudar toda a cadeia a superar alguns gargalos relacionados a volume e aos custos de produção, em um ganho de escala no qual há um benefício comum. Além disso, segundo elas, o movimento pela sustentabilidade parte de uma jornada em crescimento nas empresas no Brasil, sem interferência de uma ação de concorrência.
A professora de cenários do varejo na FIA Business School, Patrícia Cotti, faz a mesma avaliação, pontuando que esse é um movimento que aconteceria independentemente da presença da H&M no País. Para a especialista, que também é diretora de pesquisas do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar), a sustentabilidade para essas empresas já saiu de um patamar de diferencial competitivo para algo mandatório, com a mudança de um perfil consumidor cada vez mais exigente com a agenda de sustentabilidade.
"Há muitos consumidores que estão mais preocupados com essas pautas de sustentabilidade. Isso deixou de ser um diferencial e começou a fazer parte do cotidiano do consumo", diz. "Obviamente que a H&M entrando faz com que as pautas de inovação de negócios sejam aceleradas nas demais empresas, mas é um movimento que, independentemente da H&M, já aconteceria dentro do mercado brasileiro, porque já era uma discussão de algum tempo, mesmo ainda a passos lentos."
Procurada pelo Estadão, a H&M afirmou que "ainda não pode compartilhar planos específicos para o mercado brasileiro neste momento". A companhia evitou comentar diretamente sobre a venda de jeans circular na subsidiária, mas informou que a sustentabilidade está no centro do negócio, incluindo investimentos em modelos circulares e reciclagem têxtil.
"Para nós, a forma como crescemos é fundamental. Não se trata de vender mais, mas de ampliar nossas fontes de receita, tendo a sustentabilidade no centro de tudo o que fazemos. Isso inclui, por exemplo, novos investimentos e o desenvolvimento de modelos de negócio circulares, como recomércio (revenda), reparo ou tecnologias de reciclagem para têxteis pós-consumo", diz a varejista sueca.