Stênio Gardel: 'Inventar é a diversão da narrativa'
Autor fala sobre sua apuração poética no romance de estreia 'A Palavra que Resta'
Como funcionário do Tribunal Regional Eleitoral em Fortaleza, Stênio Gardel observou que muitas pessoas não sabiam assinar o nome e carimbavam o dedo no documento. Foi o mote para a escrita de A Palavra que Resta (Companhia das Letras), primeiro romance do escritor, que traz como personagem principal Raimundo, homem de 71 anos, que tem o desejo de se alfabetizar para conseguir ler uma carta que recebeu do namorado quando tinha apenas 19.
O livro, que se divide em muitos e breves capítulos, narra a trajetória desse personagem de forma não linear, em dois tempos: o passado, na sua juventude, quando se apaixona por Cícero e eles começam a namorar de forma velada, já que vivem em uma região na zona rural onde pessoas como eles, nas palavras de seu pai, são "gente torta, povo imundo, sujo"; e o presente, quando vive em uma capital e já está aprendendo a ler para conhecer a carta deixada por Cícero, 52 anos antes. A escrita de Stênio, no trânsito entre o passado e o presente de Raimundo, é marcada por uma constante qualidade no uso das palavras, com uma cuidadosa apuração poética, e traz a expectativa do leitor em saber o que acontecerá nas próximas páginas, já que o segredo contido na carta se mantém até o final do livro.
Se o mote do romance não é o retrato de um personagem homossexual e suas questões entre viver ou esconder tal condição, a trama transborda para esse universo e apresenta figuras que dialogam com essa dicotomia. Para além de aprender a ler e conhecer o conteúdo da carta, Raimundo caminha para um descobrir-se e aceitar-se, e tem ao seu lado uma das personagens mais cativantes do livro: Suzzanný, uma travesti que, no início, ele rejeita e até agride fisicamente, mas que, aos poucos, se tornam amigos e vivem juntos.
Ao se conhecerem, na saída de um cine pornô, ele demonstra por ela o mesmo sentimento de seu pai: considera Suzzanný um ser abjeto e monstruoso. Mas o querer de Raimundo o transforma tanto a partir do aprendizado das palavras como na convivência com os outros e na relação consigo próprio. Stênio Gardel realiza, em seu primeiro romance, uma obra encantadora. Confira a entrevista com o autor ao Estadão, realizada por e-mail.
Você nasceu em Limoeiro do Norte e se mudou para Fortaleza aos 17 anos. No livro, acompanhamos Raimundo saindo de uma cidade não especificada, mas com características de ser uma zona rural, indo em direção a uma capital. A partir disso, onde podemos apontar paralelos com sua biografia e como você entende a literatura no sentido de que é a partir do eu do escritor que ela pode despertar um olhar para a realidade que nos cerca?
A experiência e a vivência do escritor participam profundamente da feitura do texto literário, no meu ponto de vista. É matéria-prima, recurso que se mistura à imaginação na fundação dessa outra realidade. Pensando assim, concordo com você, que o olhar do escritor traz também a realidade para a realidade fundada na ficção. Mas isso não significa que tudo que está no livro, no meu caso, seja reflexo da minha própria vida. Sim, há aproximações, como a que você citou, mas, veja, a saída da zona rural para mim teve motivos diametralmente opostos aos de Raimundo: eu ia para estudar, fazer faculdade, e sempre incondicionalmente apoiado pela família, algo que infelizmente o Raimundo não teve. Expandindo o raciocínio, a minha experiência positiva pode sim ter contribuído na construção da experiência negativa do personagem, quer dizer, ainda assim, está lá o meu olhar para o mundo.
Raimundo, o protagonista, traz em seu nome a alcunha de imundo. No livro Quase Nome, a organizadora Socorro Acioli traz 23 contos que apresentam o que significa ter ou ser um nome. E lá encontramos um conto de sua autoria. Neste sentido, o quanto essa experiência auxiliou na escrita do romance?
Apesar de ter sido publicado antes, o conto A Memória do Nome, que é meu texto no Quase Nome, foi escrito depois da primeira versão do A Palavra que Resta, que já continha o capítulo Imundo. Então, a relação entre os dois na verdade foi inversa. A forma do texto no conto tem um pouco da forma de alguns capítulos do romance - o fluxo de pensamento em primeira pessoa, com poucos pontos finais, com certa não linearidade no encadeamento de ideias.
A professora de Raimundo, Ana, diz que, na poesia, "uma palavra diz muito mais do que diz" e que as palavras "esticam o horizonte da gente". Não faltam, no romance, pequenas pílulas poéticas que expandem o lugar comum do cotidiano. Você pode falar sobre como vê isso em sua obra e como a poesia brota desta realidade?
A literatura que mais me encanta é essa que me desperta pela palavra, por usos inesperados de voz narrativa ou de manipulação do tempo narrativo, por imagens surpreendentes; que conta a história usando as possibilidades da palavra para contá-la de uma maneira refratada. Fico muito feliz que o livro tenha um pouco disso, mas não são trechos ou frases planejadas, elas surgem da porção espontânea do processo, e só então podem ser trabalhadas nas revisões para que eu tenha certeza que são as palavras exatas. Acho que isso pode vir exatamente das minhas leituras, que me oferecem a chance de reler a realidade, e essa minha releitura ou olhar, por sua vez, está também intricada no processo de escrita.
As personagens do romance são contraditórias e carregam muitas dualidades, sempre pautadas pela ideia de que o meio social determina essas características. Destaco a personagem de Suzzanný como o oposto dessas contradições. Há uma inteireza nela, uma certeza das coisas, e é ela quem impulsiona muitas mudanças na personagem de Raimundo. Como se deu a escrita e construção das personagens?
Inventar, tanto o enredo quanto as personagens, é muito bom, uma das partes mais divertidas de todo o processo. Acho que tudo começa na ideia central: eu tinha duas imagens: a de pessoas de idade que não sabiam ler e escrever, tendo que carimbar o dedo nos documentos e a de um homem que possuía algo muito importante para ler, mas não podia ou não conseguia. A junção das duas formou a premissa inicial e dela vieram perguntas: quem é esse homem? o que ele não consegue ler? por que não consegue? Então, passo a buscar respostas para estas perguntas e os personagens (e a trama também) vão surgindo e ganhando suas primeiras características. No caso de A Palavra que Resta, os primeiros a surgir foram Raimundo, Cícero e a carta, como ligação entre os dois primeiros. No desenvolvimento dos três foram surgindo os demais. À medida que eles se tornam pessoas da realidade do livro, o objetivo é este, procurar humanizá-las, com experiência de vida, sentimentos, pensamentos, atitudes, reações, e ser contraditório, dual e até múltiplo, é parte do que é ser humano. A Suzzanný tem inteireza, gostei muito desta palavra para ela, depois de tudo que ela viveu, mas acho que ela também foi insegura quando falou com o pai, como ela mesma diz que estava. Ela conquista a certeza de quem é, e ela é assim exatamente para fazer contraponto ao Raimundo, no momento em que eles se encontram.
O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, se dá a partir de muitas cartas escritas e lidas pelas personagens. Em A Palavra que Resta, há apenas uma carta que norteia todo o livro. É ela que impulsiona em Raimundo o querer de se alfabetizar. Você diria que seu romance é também um tratado de amor?
Honestamente, não sei, acho "tratado de amor" tão grande, tão suntuoso. Não que o amor não esteja no livro - está, e de muitas formas, mas talvez o mais latente seja esse gostar de nós mesmos. Não bem-querer o que somos é limitante, acho, nos afasta dos nossos potenciais, das nossas forças; pode nos fazer muito mal e nos levar a fazer muito mal a outras pessoas, inclusive a pessoas que amamos. Parte de amar é doar e como vamos doar algo de que nós mesmos não gostamos?