'Pequeno ensaio sobre a covardia e suas consequências', 'Matias na Cidade' é reescrito pelo autor
Alexandre Vidal Porto voltou ao seu romance mais importante, que toca em temas como machismo e privilégio, 18 anos depois do lançamento, e fala agora sobre esta nova obra
Em um livro em que a busca do prazer é tão intensa, não surpreende que exista também, em Matias na Cidade, uma forte aura de morte. Publicado originalmente em 2005, e relançado em nova edição, totalmente reescrita, pela Companhia das Letras, o romance do escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto pertence a uma importante tradição do romance brasileiro, aquela que se dedica a pensar sobre a vida das elites econômicas do nosso país.
Os romances sobre os donos do poder e da grana são uma oportunidade para que escritores e escritoras brasileiros debatam, a partir dos privilégios desta classe social, as contradições da nossa sociedade. O olhar social, porém, não é a única fonte de interesse da obra de Vidal Porto.
Matias na Cidade indaga a respeito da própria essência dos relacionamentos contemporâneos, em especial a instituição do matrimônio. Além disso, conecta os movimentos da vida e da morte, pois ao acompanharmos a vida errática do protagonista do romance, Matias Grappeggia, somos lembrados da compartilhada solidão que existe na busca por um sentido para a vida.
Vencedor do prêmio Paraná de Literatura, finalista do prêmio Jabuti e traduzido para várias línguas, Vidal Porto conversou com o Estadão não apenas sobre seu romance relançado, como também sobre a carreira literária, tradução e o impacto das redes sociais na literatura contemporânea.
Matias na Cidade é relançado em uma nova edição, totalmente reescrita, 18 anos após o seu lançamento original. Ao ler o romance, penso como os temas sociais da obra a fazem parecer ter sido escrita e publicada ainda neste ano de 2023. A partir de Matias na Cidade, como você conecta o Brasil de 2005 e o Brasil de 2023?
Essa conexão que você aponta talvez se dê pelo fato de que as interações entre os personagens de Matias na Cidade são quase sempre permeadas pela desigualdade - social e de gênero, sobretudo. Em 2005, o Brasil era desigual. Em 2023, continua a sê-lo. Questões em que o livro toca, como machismo e privilégio, seguem tão ou mais atuais hoje do que quando ele foi escrito, há mais de vinte anos. Nesse aspecto, a injustiça social do BrasiI manteve o contexto da história relevante, infelizmente.
Você afirma que o romance é o seu livro mais importante e que a vontade de o reeditar te acompanha há anos. Eu acho fascinante como os livros que escrevemos nos assombram e nos acompanham. Por que Matias na Cidade não saiu da sua cabeça esse tempo todo?
Como autor, ainda é meu livro mais importante. A história de Matias me intriga até hoje e anuncia alguns temas de que eu já tratei literariamente e outros de que ainda espero tratar. No entanto, com os anos, comecei a ver defeitos no livro que me incomodavam a tal ponto que passei a ter vergonha do livro. Pedia para as pessoas não lerem Matias da cidade na edição original. Tinha ideia de que essa minha reação era injusta, porque muita gente que eu respeito tinha gostado do livro na época do primeiro lançamento. No entanto, era importante para mim que alguns pontos da história e dos personagens ficassem mais claros, e foi ótimo que a Companhia das Letras tenha topado a reedição.
Como foi o processo de reescrita do romance?
Foi longo e minucioso. Era importante para mim entender se os defeitos que eu enxergava no livro eram reais ou só neuroses de minha cabeça. O texto passou pela leitura de uma editora independente, Vanessa Ferrari, e pela de minha então editora na Companhia das Letras, Luara França. Com base nos comentários que elas fizeram e nas minhas impressões, comecei o trabalho, que era revelar os contornos da história mais nitidamente. O desafio era reescrever sem descaracterizar o livro. A última cena do filme Mães Paralelas, do Almodóvar, mostra técnicos forenses usando pincéis para expor esqueletos enterrados em uma vala comum. Foi assim que eu me senti.
O casal de protagonistas - Matias e Susana - desempenha papéis sociais muito bem definidos enquanto membros da elite de São Paulo. Ao mesmo tempo, estes papéis são fortemente influenciados por construções de gênero e esta me parece uma crítica certeira do seu livro. Poderia comentar o debate sobre gênero na sua literatura?
O casal Matias e Susana adapta-se integralmente às construções de classe e gênero da elite paulistana. Fazem parte e são modelares no desempenho de suas identidades sociais. No entanto, não têm ideia de que são justamente esses papéis sociais que limitam suas possibilidades existenciais e sua felicidade. As questões de gênero nos meus livros estão sempre vinculadas a contextos de descoberta da identidade e de realização pessoal. No meu segundo livro, Sergio Y vai à América, vinculo gênero e felicidade diretamente. Mas em Matias na cidade o tema aparece, e em Cloro e Sodomita, que sai agora em agosto, também.
Matias tem uma sexualidade voraz, que me lembra o desejo incontrolável de alguns protagonistas dos romances naturalistas do século 19. Vejo uma contradição em Matias, bem explorada no romance: a libido é uma energia pulsante, mas o protagonista parece uma casca vazia. Como sexo e poder se relacionam no livro?
Oscar Wilde dizia que tudo tem a ver com sexo, exceto o sexo, que tem a ver com poder. Matias funciona nesse entendimento. Tudo para ele é sexo. É uma maneira de ele se colocar no mundo, de exercer poder sobre as mulheres, não de se conectar com elas. A função que ele dá ao sexo é equivocada. É a genitália que aponta o caminho que ele seguirá na vida, porque não há sensibilização em outras partes de seu corpo. É como se todo o objetivo amoroso de Matias Grappeggia se reduzisse à obtenção de um orgasmo. Ele não percebe que, no fundo, isso o limita e o prejudica.
Por que Matias não consegue sair de um ciclo vicioso no qual nenhuma experiência, ou relacionamento, exceto talvez no final do romance, lhe parece trazer algo significativo?
Porque romper esse ciclo vicioso exigiria de Matias coragem para deixar a estrutura em que já se está inserido e reinventar-se. Ele não tem esse tipo de coragem. Nesse sentido, o livro pode até ser lido como um pequeno ensaio sobre a covardia e suas consequências. A felicidade de Matias só poderia vir por meio daquele relacionamento no subúrbio, deslocado das estruturas de que ele fazia parte. Salete lhe diz: "sou sua felicidade prometida". Ele não presta atenção, mas ela estava correta.
O livro me parece diagnosticar com precisão um forte impasse nas relações amorosas contemporâneas. A instituição casamento parece não funcionar mais, o prazer sexual pouco significa, verdadeiras conexões são raras. Onde estamos falhando em nossa vida social e como a sua literatura tem pensado isso?
Eu falo da falta de intimidade entre os casais. Meus protagonistas, por diferentes razões, tendem a ser emocionalmente desconectados de suas vidas matrimoniais ou de seus contextos sociais. Mas não gostaria de generalizar: acredito que a instituição do casamento, embora em transformação, pode funcionar bem, e que tem gente com vida sexual significativa, estabelecendo conexões íntimas reais. A felicidade toma formas inusitadas, nem sempre vem na forma que a gente imagina.
Ao longo da carreira de um autor, as referências utilizadas para a escrita da ficção, as "influências", vão se modificando. Quais eram as suas referências e influências para escrever Matias na Cidade? Elas continuam as mesmas para o Alexandre Vidal Porto em 2023?
Quando comecei a escrever Matias, tinha acabado um relacionamento e estava deprimido. Morava sozinho no Chile, e o livro foi uma forma de sublimar essa situação pessoal, mas também de me reaproximar da língua portuguesa. Buscava acolhida na língua materna. Essas foram as condições que me moveram: necessidade de expressão e de refúgio linguístico. Minha influência foi isso. Hoje, em 2023, essas influências continuam válidas: necessidade enorme de expressar o que sinto na língua em que não tenho limitação.
Saindo um pouco do seu romance, gostaria que falássemos sobre sua carreira. Sua obra tem sido objeto de estudos, de resenhas e foi traduzida para várias línguas. Além disso, ela tem sido sempre comentada com um merecido espaço na mídia. Como você vê as mudanças na carreira do escritor brasileiro e do mercado ao longo destes anos?
O que eu gostaria de falar em relação ao mercado, especificamente o internacional, é que existe mais interesse pela literatura brasileira no exterior do que as pessoas acreditam. No entanto, publicar um autor brasileiro no exterior é caro. Os custos da tradução são altos, e isso coloca o escritor brasileiro em desvantagem. Apesar de sua beleza, no mercado literário mundial, o português é um delimitador ao acesso. A tradução serve, entre outras coisas, para garantir acesso a mercados. O governo brasileiro deveria reforçar o apoio às atividades de formação de tradutores e ao fomento de traduções. Saramago dizia que os escritores fazem as literaturas nacionais mas que são os tradutores que fazem a literatura universal.
Quando Matias na Cidade foi publicado pela primeira vez, a internet já era importante para a nossa literatura, mas as redes sociais tinham menos peso do que hoje. Qual a sua avaliação sobre o impacto das redes sociais na literatura nos últimos anos?
O impacto positivo das redes sociais é que as pessoas podem se autopublicar e se autodivulgar, e isso é transformador. Também permite que você faça parte de comunidades de escritores, coisas desse tipo. Mas não sou entusiasta de redes sociais. Uso como janela para o mundo e como caderno de endereços. Não me fazem bem nem ao meu trabalho. Interajo pouco. Fico sufocado pela velocidade e pelo volume das relações que se estabelecem lá. Não dou conta. Preciso de isolamento para escrever.
Matias na Cidade
Autor: Alexandre Vidal Porto
Editora: Companhia das Letras (144 págs.; R$ 64,90; R$ 29,90 o e-book)