Produtor narra encontro de Miles Davis com Ivan Lins
Depois de uma vida inteira infurnado em estúdios de gravação nos Estados Unidos, o tecladista, produtor e arranjador Jason Miles, 58 anos, não quer mais saber das salas acústicas e só se interessa pelos palcos. Como o do Rio das Ostras Jazz & Blues Festival, onde foi a atração principal da segunda noite do evento, na quinta-feira.
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Desiludido com a indústria fonográfica, o músico que, além de seus trabalhos solo, tem no currículo colaborações com nomes como Michael Jackson e Aretha Franklin, só quer saber de rodar o mundo tocando seu teclado. Na Região dos Lagos, o repertório estava focado no seu CD From Miles to Miles, em que faz uma releitura da obra do trompetista Miles Davis (1926-1991) ¿ de quem tornou-se amigo pessoal ¿ a partir dos três álbuns de que participou: Tutu (1986), Music From Siesta (1987) e Amandla (1989).
"A despeito da fama de ser uma pessoa difícil de se lidar, posso garantir que Miles Davis foi o ser humano mais doce que já conheci", atesta o tecladista.
Jason Miles traz ao Brasil o tributo ao emblemático músico no mesmo ano em que um de seus mais badalados álbuns completa 50 anos e ganha homenagens ao redor do mundo. Contudo, conta Jason, nenhum dinheiro seria capaz de convencer Miles Davis a subir no palco para reinterpretar as canções de Kind of Blue (1959) depois de desfeita a banda que o registrou.
"Ele chegou a receber propostas de milhões de dólares para tocar novamente aquele disco ao vivo, e nunca aceitou", afirma Miles. "Dizia que nenhum outro músico seria capaz de tocar aquele repertório. Por isso, não incluí nada deste álbum no meu show. Além dos discos em que toquei, passo por algumas peças de In a Silent Way (1969) e On the Corner (1972)".
Lançamentos temáticos
Jason Miles não é especializado apenas na obra do magistral trompetista. Em sua carreira, já produziu lançamentos temáticos referentes a trabalhos de artistas que admira, como Celebrating the Music of Weather Report (2000), What's Going On: The Music of Marvin Gaye (2006) e, seu preferido, A Love Affair: The Music of Ivan Lins.
"Este CD foi ideia do Miles", lembra Jason. "Ele gostava tanto do Ivan Lins que queria realizar um álbum todo cantado em inglês, para aproximá-lo do público americano. Era para ele ter colocado seu trompete no disco inteiro. Por uma infelicidade ele morreu pouco antes de começarem as gravações".
Com letras vertidas para o inglês e participação de nomes como Sting, Marcus Miller, Romero Lubambo e o próprio Ivan Lins, a produção foi premiada com um Grammy em 2001.
"Minha paixão pela música brasileira começou em 1974, quando conheci o baterista Dom Um Romão, que tocava com o Weather Report. Por ele, tomei contato com a música de Luis Eça, Sivuca, Tamba Trio e Milton Nascimento", conta ele, enquanto cantarola trechos de Tudo Que Você Podia Ser e Cravo e Canela, em um português truncado, porém cheio de propriedade. "Meu sonho é produzir um tributo ao Milton. É um dos meus artistas prediletos".
Enquanto não coloca em prática o projeto ("Não entro em estúdio há oito meses, estou perdido com as mudanças que o mercado de discos vem passando"), realiza outro sonho antigo: conhecer o Brasil, país que, curiosamente, apesar de sua convivência com os músicos daqui, visita pela primeira vez".
"Nunca tinham me convidado, mas sempre quis vir ¿ celebra. ¿ Vou aproveitar e conhecer outras cidades, como o Rio".
Além das teclas, Jason Miles ataca em diversas outras frentes. Produz jingles e cria programações eletrônicas para artistas e empresas (é dele as trilhas dos comerciais do American Express). Seu envolvimento com a música brasileira o levou a ser a opção óbvia quando Michael Jackson realizou a faixa They Don't Care About Us, que ganhou até clipe gravado em favela carioca.
"Foi uma coisa maluca, em cima da hora", conta. "Me ligaram de manhã perguntando se eu podia preparar as programações e gravar à noite. Como tinha compromisso naquele dia, recusei. Cinco minutos depois, ligaram perguntando se no dia seguinte estaria livre. Queriam alguém com intimidade com os ritmos brasileiros. Acabei fazendo, mas nem encontrei o Michael. Ainda bem, ele parece ser um cara muito esquisito".
Pouco antes de subir ao palco em Rio das Ostras, a banda Pau Brasil, que o antecedeu, encerrava sua apresentação com uma versão instrumental de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque.
"Esta é da trilha de um dos meus filmes preferidos", antecipava o americano, revelando intimidade também com o cinema nacional. ¿ José Wilker e Betty Faria, com aquela caravana cruzando o Brasil. Gostaria muito de fazer um projeto como este um dia.Na apresentação, no papel do homenageado, Jason escalou o experiente trompetista Patches Stewart ¿ este em sua quarta passagem pelo Brasil, a primeira em 1985 a bordo da banda de Al Jarreau. As recriações da obra de Miles Davis ganharam as carrapetas do DJ Logic, com quem Jason Miles registrou seu mais recente CD, Global Noize, e com quem tem um inédito, ao vivo, ainda sem previsão de destino.
"Acho que, se Miles Davis estivesse vivo, estaria dialogando com a música eletrônica, usando DJs", imagina Logic. "Vamos esperar um pouco para saber o que fazer com o show inteiro que registramos. É provável que a gente disponibilize pela internet e siga apenas tocando ao vivo pelo mundo".