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Mais do que uma despedida, encontro de Preta com Gilberto Gil provou a grande artista que ela foi

O estilo direto e muitas vezes espalhafatoso com o qual tratou todos aspectos de sua vida fez com que profissionais da imprensa - eu, inclusive - vissem com desconfiança seu talento como cantora

21 jul 2025 - 08h45
(atualizado às 09h36)
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Era 26 de abril e Gilberto Gil comandava o espetáculo Tempo Rei no Allianz Parque, em São Paulo. Pouco depois de cantar a reflexiva Seu Eu Quiser Falar com Deus, música que fala de aceitação e humildade perante o divino, o cantor e compositor baiano praticamente sussurrou o nome da filha: "Pretinha", disse. Foi a senha para que Preta Gil entrasse em cena, amparada pela irmã, Nara Gil, e pela cunhada Mariá Pinkusfeld, para uma emocionada versão de Drão.

Preta Gil Mmorreu, aos 50 anos, na noite desse domingo, 20
Preta Gil Mmorreu, aos 50 anos, na noite desse domingo, 20
Foto: Felipe Rau/Estadão / Estadão

Preta Maria Gadelha Gil Moreira, que morreu no domingo, dia 20 de julho, depois de uma longa batalha contra o câncer, foi um dos "grãos" do relacionamento do pai com Sandra Gadelha, de quem se separou em 1982. Ele já tinha dedicado a canção para a filha numa apresentação que fez em março, na cidade de Salvador. "Eu não sei explicar o que senti hoje, por hora eu só sei agradecer!!! Obrigada Pai por tudo!!!! Eu te amo !!!!", escreveu ela em suas redes sociais.

O estilo direto e muitas vezes espalhafatoso com o qual tratou todos aspectos de sua vida fez com que profissionais da imprensa - eu, inclusive - vissem com desconfiança seu talento como cantora. O disco de estreia, Prét-A-Porter, de 2003, no qual aparece nua na capa (ação que o próprio pai, Gilberto, classificou como "desnecessário"), também não ajudou a dissipar o preconceito. Ele chamou mais atenção por esse detalhe do que pela qualidade do material, uma coleção de canções de boa procedência, que denotavam influências do axé e da soul music. Dali, saiu o hit Sinais de Fogo, de Ana Carolina, que se tornou um dos pontos altos de seu repertório.

A sua discografia traz outras incursões criativas pelo mundo pop. Como o single De Volta ao Sol, lançado em fevereiro de 2024. O verso "o sorriso que ela tem está de volta ao sol" era um sinal de esperança na luta contra o câncer, diagnosticado em janeiro de 2023, e que parecia ter sido vencido em dezembro do mesmo ano. "A canção define o meu atual momento, em que dei a volta por cima e venci um câncer. Estou de volta ao sol depois de ter vencido uma batalha", disse em entrevista. O mesmo single trazia Axé Disco, parceria com o Psirico, que fazia uma conexão entre os gêneros baiano e americano. "A diversidade e a inovação têm contribuído para a popularidade do pop nacional e quis trazer isso para o meu novo trabalho."

A cantora recebeu seu quinhão de narizes torcidos pelo fato de ser filha de um dos maiores nomes da MPB e ter assinado com uma gravadora major (a Warner, que por muitos anos lançou os discos de seu pai). Mas Preta, acima de tudo, é um exemplo de persistência. Ouviu do próprio Gilberto Gil um "vá procurar tua turma" quando pediu conselhos musicais e soube cercar-se de alguns dos melhores músicos de sua geração -entre eles os guitarristas Davi Moraes e Pedro Baby, e o baixista Betão Aguiar, herdeiros dos Novos Baianos, e o tecladista Donatinho, filho de João Donato. Preta, de 2005, é ainda mais apurado, com produção de Davi Moraes e uma irresistível incursão pelas sonoridades baiana e carioca.

Gilberto Gil chora durante participação da filha Preta Gil durante show no Allianz Parque.
Gilberto Gil chora durante participação da filha Preta Gil durante show no Allianz Parque.
Foto: Júlia Pereira/Estadão / Estadão

Preta passou por tempos difíceis, que aconteceram pouco tempo depois de sua estreia em disco. Quando a situação financeira apertou, mudou-se com o filho, Francisco, para um quarto da casa da mãe, Sandra Gadelha, onde traçou planos para a reconstrução de sua carreira. O (re)início se deu em 2008. O show Noite Preta estreou num inferninho em Botafogo, no Rio de Janeiro, onde cabiam no máximo 80 pessoas. Dali passou para um local em Laranjeiras com lotação de 400 pagantes e se transferiu para outro maior, que acomodava 3.000 admiradores. Em 2009, pouco mais de um ano depois de seu renascimento artístico, criou o Baile da Preta, que chegou a levar 300 mil pessoas no carnaval do Rio. "Você tem de fazer seu público", me disse numa entrevista que meu deu nos tempos de pandemia - e na qual saí admirado pelo seu pé-no-chão, sua visão artística e sua sagacidade.

Uma das vezes em que assisti a uma apresentação de Preta foi num evento fechado, uma festa de uma empresa que promovia shows e musicais de teatros. Preta, ali, mostrou que era uma entertainer nata, interpretando canções de diversos estilos musicais -fossem dela ou de outros autores- e animando uma plateia que visivelmente não era sua. E a exemplo dos grandes astros que vi num palco, conseguiu virar um jogo que não estava a seu favor. Ao final do espetáculo, estávamos todos entregues, com direito até coreografias.

No dia 26 de abril, Preta Gil emocionou a todos os presentes no Allianz Parque com seu dueto com o pai na música Drão. Pouco depois, partiria para os Estados Unidos onde se submeteria a tratamento com novos medicamentos. Mais do que uma despedida, como esse encontro com Gil mostrou, ali foi a prova de que era uma grande artista.

Optei por focar em assuntos musicais, mas Preta é símbolo de luta. Ao assumir sua bissexualidade, ajudou na pauta do casamento entre pessoas do mesmo sexo; quando aceitou seu corpo - que foi vítima de ataques gordofóbicos - ajudou a aumentar a auto estima de mulheres que enfrentaram o mesmo preconceito. Vítima de racismo na infância, Preta foi uma das vozes mais poderosas na luta contra o lodo que habita as regiões abissais das redes sociais. Mais do que nunca, num período como este em que vivemos, onde os tais "nepo babies" viraram tendência, Preta mostrou que ter um sobrenome famoso nunca deu camisa para ninguém. Tudo é uma questão de luta e talento. Obrigado, Preta. E vai na paz.

Estadão
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