'Hair': Com Rodrigo Simas, musical clássico expõe a utopia e a fragilidade da juventude
Um dos mais reconhecidos musicais, sucesso da Broadway, chega a São Paulo em nova montagem brasileira e marca a inauguração do novo BTG Pactual Hall, antigo Teatro Alfa, nesta sexta, 24
Uma nova era de Aquário começa na sexta-feira, 24, quando o musical Hair inicia sua temporada paulistana, depois de sucesso no Rio. A estreia, aliás, é dupla, porque marca também a inauguração do novo BTG Pactual Hall, o antigo Teatro Alfa, que fechou suas portas em 2022 e reabre após uma reforma avaliada em R$ 7,4 milhões.
"Hair foi uma escolha pessoal para a reabertura, porque ainda é uma das principais referências do movimento cultural e comportamental que mudou o mundo nos anos 1960 e 70", comenta Aniela Jordan que, ao lado de Luiz Calainho, comanda a Aventura, produtora responsável pela programação do novo espaço.
Jovens mortos em guerras estúpidas, preconceito contra homossexuais, crise geracional entre pais e filhos - o planeta parece que não girou desde que Hair estreou em 1967 no circuito alternativo dos Estados Unidos, conquistou a Broadway e logo foi alçado à condição de clássico por tratar daqueles assuntos sob um olhar inovador e original. "O mundo parece viver um looping ao contrário, pois ainda persiste a luta de pacifistas contra guerreadores", afirma Charles Möeller que, ao lado de Claudio Botelho, assina a direção artística do espetáculo.
A dupla já comandou uma versão do musical em 2010, quando, dos figurinos à atlética coreografia, da versão das letras à interpretação, resgatou um sentimento duradouro. "Hoje, a fragilidade daquela juventude é mais atual. É errado pensar nos personagens de Hair como um bando de super-heróis porque, em meio a uma utopia ingênua, eles erram muito nos atos e nas falas."
A primeira montagem brasileira de Hair foi um verdadeiro ato de resistência: aconteceu durante a ditadura militar, em 1969, logo depois da estreia americana. Sob a direção de Ademar Guerra, trouxe um elenco com muitos jovens ainda iniciantes como Sônia Braga, Antônio Fagundes, Ney Latorraca, Armando Bogus, Altair Lima e Aracy Balabanian, entre outros.
O musical acompanha os passos de John Berger (Rodrigo Simas), hippie que comanda uma tribo de moças e rapazes em Nova York. O grupo logo é reforçado por Claude (Eduardo Borelli), rapaz que vive um dilema: oprimido pelos pais, que o querem alistado no Exército para a Guerra do Vietnã, ele também é assediado pelos hippies, que o incentivam a se livrar das amarras sociais.
"Claude vive o dilema entre seguir a orientação dos pais ou adotar a ideologia libertária que acabou de conhecer. Para contar isso, a peça traz muitas referências históricas e religiosas", comenta Borelli. "E ganha mais potência com a força da tribo que é o grupo de 30 atores que forma o elenco", completa Simas.
Segundo Möeller, o musical traz paralelos com Shakespeare e o cristianismo. "É uma espécie de Novo Testamento, pois a peça começa com o Anjo da Anunciação cantando Aquarius, que prega uma nova era e a vinda do novo Cristo, no caso, Claude. Em seguida, entra em cena John Berger, que tem as mesmas iniciais de João Batista e que fundamenta uma liturgia inédita - por meio do LSD, ele alcança uma nova fronteira, uma referência ao que Paul McCartney disse nos anos 1960 sobre encontrar Deus por meio da droga", comenta.
Hair é uma parábola sobre a geração combatente daquela década. Até estrear em 1967, o musical foi retrabalhado durante três anos pelos seus criadores, os atores Gerome Ragni e James Rado. Durante o período, eles absorveram inúmeras referências sobre as rápidas transformações que o mundo vivia.
"Eles queriam contar a própria história, mas, para evitar um choque na sociedade da época, temas fortes como sodomia, amor livre e crítica a governos beligerantes aparecem de forma alegórica", conta o encenador. "Logo no início do espetáculo, quando Berger caminha pela plateia pedindo dinheiro e usando apenas uma tanga, é um disfarce para a prostituição."
O projeto deslanchou com a chegada, no final de 1966, de Galt MacDermot que, em apenas três meses, compôs toda a trilha do espetáculo, cuja sonoridade também remetia ao inconsciente coletivo jovem da época - pela primeira vez, um musical unia rock'n'roll com a música negra (ainda pouco conhecida fora dos guetos), mantras orientais, letras psicodélicas e influências de música tribal.
Como o local onde vivem os hippies é um refúgio de paz e tranquilidade, Charles Möeller buscou na própria experiência um espaço semelhante para ambientar a nova versão. "Percebi que o teatro é o local onde realizo minhas utopias e, ao escolher como cenário um teatro abandonado, o musical ganhou um tom mais operístico", explica ele, que se valeu ainda de um enorme telão de LED para projetar outros ambientes - como a casa dos pais de Claude.
A orientação também influenciou a coreografia criada por Alonso Barros, essencialmente marcada pela teatralidade. "As danças trazem movimentos mais abertos que ajudam a delinear o espírito de tribo daqueles hippies", conta ele, que promoveu uma mudança no número de protesto contra a força policial: ao invés de carregar os tradicionais cartazes com palavras de ordem, o elenco dança ao redor de uma grande barra suspensa, semelhante à usada em aulas de balé, que também identifica a barreira colocada pelos soldados.
Möeller e Botelho respeitaram as transgressões originais da peça. Ao contrário do filme dirigido por Miloš Forman em 1979, é Claude (e não Berger) que embarca fardado para o Vietnã, retornando dentro de um caixão. Também permanecem a famosa cena da nudez coletiva, que marca o final do primeiro ato e causa frisson na plateia, além das "viagens" promovidas pelo consumo de drogas.
Dividido em dois atos, Hair mostra momentos opostos vividos pelos personagens, metáfora para a fragilidade juvenil. No primeiro, quando é exaltada a arrogância de moças e rapazes, o sol brilha, mas, no segundo, com a chegada do inverno, aqueles mesmos hippies querem voltar para a casa dos pais, como bichos assustados.
"É o inverno da alma. Tudo caminha para a morte", comenta Möeller, que observa Claude e Berger como duas faces da mesma moeda - se o primeiro é um jovem frágil, cheio de dúvidas, mas com transbordante sensibilidade, o outro exibe um lado selvagem e uma sexualidade evidente. "É como se fossem o id e o superego, o corpo e a alma, o racional e o irracional conduzindo a tribo."
E a canção final, o hit Let the Sunshine In, surge como um alerta: se não deixar o sol entrar, o inverno vai persistir e preservar a geleira da alma. Para que o encerramento do musical não seja sombrio, porém, a plateia é convidada a subir ao palco e cantar com os atores. "Tudo se transforma em uma imensa liturgia, com as pessoas se esquecendo de seus problemas", diz Möeller.