Veja filmes que pedem drinques como acompanhamento
Eu poderia dizer que a culpa é de Don Draper, mas na verdade o culpado é Robert Mitchum. Foi ele que vi, em um dos meus filmes favoritos,
Out of the Past, tomando bourbon em um pequeno bar de Acapulco (ou a versão hollywoodiana da cidade), esperando a garota, pensando sobre o dia que se esvaiu como a fumaça dos cigarros que fumou. Mas nem me incomodei. O que eu estava pensando era, cara, como aquele bourbon parecia saboroso!
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Por isso interrompi o filme no meio da fala de Mitchum, fui ao armário de bebidas e ao refrigerador e me servi um Knob Creek com gelo. E depois mais um.
Ao final do filme, cuja labiríntica trama envolvendo múltiplas traições havia me confundido em todas as ocasiões anteriores em que o havia assistido, tudo me parecia ainda mais incompreensível do que antes. Mas e daí?
Por isso, Don, não foram os seus drinks de cara excelente, em bares ainda melhores da série Mad Men, que me levaram ao hábito de combinar bebidas e filmes, que já dura 15 anos. É algo que faço com minha mulher, em grupo e (não me envergonha admitir) sozinho. É como se eu acrescentasse uma nova dimensão à trama, à fotografia e especialmente ao senso de imersão, se o filme se passa em algum país do qual o drinque que tenho em mãos se tenha originado.
Bebidas diferentes causam diferentes resultados. Out of the Past e Knob Creek propiciam relaxamento mas com ar de ameaça. Mas se você assistir ao filme bebendo mezcal Monte Alban e uma cerveja Modelo Negro, ele se torna vibrante e enérgico. As cenas de abertura, no México, parecem se estender até o final, até a última traição dentro da traição. E tudo faz sentido.
Há combinações óbvias: The Curious Case of Benjamin Button e Sazerac, a bebida predileta do protagonista. Outras são menos simples. Eis algumas de minhas combinações preferidas, que desenvolvi depois de muitas tentativas e erros.
The Sword of Doom (1966) e shochu Chiyonosono Black Warrior (slogan da marca: "o protetor dos justos!"), e cerveja Sapporo Premium Lager.
Esse talvez seja o maior filme de espadachins já realizado, e quando foi lançado em DVD o assisti tomando saquê. Mas o saquê acalma, e não combina com a trama brutal e muitas cruel, que tem por centro um samurai psicótico que mata por prazer. Por isso tentei algo mais forte, shochu, o irmão mais velho e malvado do saquê, feito de cevada destinada, acompanhado por uma cerveja. O contraste entre a força do saquê e a suavidade da bebida me fazia querer saltar para dentro da tela com a espada na mão.
Sabrina (1954), acompanhado por um martini de gim ou vodca, gelado, servido sem pedras de gelo e com azeitonas.
O filme é reluzente, polido, mas a trama parece implausível demais. Ninguém acredita que o envelhecido Humphrey Bogart seria capaz de seduzir a jovem e frágil Audrey Hepburn. Mas a imagem é tão boa, e a bebida tem papel tão central na trama, que assisti-lo bebendo certamente parece uma boa ideia - e ajuda Bogart a parecer um pouco mais jovem a cada gole.
A Very Long Engagement (2004), combinado a Lucid Absinthe Superieure.
Gosto do efeito do absinto - parece aguçar seus sentidos, e não embotá-los -, mas não gosto de seu sabor. Bom - isso me ajuda a não beber demais e controlar bem meus receptores fílmicos.
A Very Long Engagement é uma adaptação fiel, por Jean-Pierre Jeunet, de um livro de mistério francês de Sebastien Japrisot. A trama é complicadíssima, mas o absinto ajuda a abstrair o realismo mágico que Jeunet procura criar com as cores do filme, e a ver a beleza simples da ideia central da trama.
I Know Where I'm Going! (1947), acompanhado por The Balvenie Doublewood, um uísque single malt de 12 anos, sem gelo.
Os filmes de Michael Powell e Emeric Pressburger tem algo de sobrenatural, que sugerem que os realizadores estavam bebendo alguma coisa enquanto os filmavam. Neste caso, uma noiva viaja às ilhas Hébridas, na Escócia, para se casar com um rico industrial, mas termina se apaixonando por um charmoso piloto da força aérea que enfrenta um momento difícil.
O filme foi rodado em locação: o vento, o frio e o cheiro do sal marinho parecem infiltrar a casa mesmo que você esteja assistindo em um apartamento em Brooklyn, como eu, e Balvenie sem gelo é a resposta perfeita para a sensação de frio. Além disso, os filmes de Powell e Pressburger também tem um humor malandro e um calor humano inescapável e, ao contemplar o uísque em meu copo, concluo que ele desfruta das mesmas qualidades.
Mad Men, terceira temporada (2009), acompanhado por um old-fashioned feito com Rittenhouse Rye (um cubo de açúcar, um toque de bitter, duas doses de Rittenhouse, misturados e servidos com gelo e uma fatia de laranja).
Não é um filme, claro, mas a qualidade de produção de Mad Men não fica muito abaixo do cinema. Comecei a temporada três na expectativa de amar a história, mas me surpreendi ao perceber o quanto quase todos os personagens me desagradam - um bando de babacas, racistas, sexistas e arrogantes; até as mulheres são misóginas.
Don Draper, o personagem central, é o pior deles, e eu não compreendia direito por que alguém que preza tanto a franqueza escolheria um drinque complicado como old-fashioned que ele aparece bebendo em diversas ocasiões.
Por isso, me uni a ele. E bebendo old-fashioneds, comecei a simpatizar com Draper, suas dificuldades psicológicas, sua vida de mentiras: fica muito mais fácil conviver com tudo isso depois de muitas fatias de laranja decorando muitos copos.
Saúde, Don. Saúde.