'Natimorto' cria terror urbano entre cigarros e cafés
No começo dos anos 00, o até então quadrinista Lourenço Mutarelli foi convidado para criar uns desenhos que seriam inseridos no filme Nina (2004), de Heitor Dhalia. Algo naquela curta experiência parece ter despertado o artista para algo que, agora, é indissociável de sua carreira. Autor do livro O Cheiro do Ralo, que chegou aos cinemas em 2007 também com Dhalia, e ator nos curtas Cidade do Tesouro e Bartô, Mutarelli agora vê o seu reflexo invertido em tela grande. E com a estreia de Natimorto, o cinema que já latejava em suas palavras, agora lateja em suas veias e corrói seu corpo e pulmão.
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Adaptado do livro homônimo do próprio Mutarelli, o "musical silencioso" como explica o subtítulo da obra, tem um texto pronto para o teatro que já o adaptou. Ao ver o filme sustentado nas atuações do escritor e da atriz Simone Spoladore, fica a sensação de que era mesmo no palco que a obra deveria ter se mantido. Mestre em criar ambientes emocionalmente claustrofóbicos, algo que coloca sua obra como uma quase irmã visual de Kafka, Mutarelli guia e é guiado por seu fascínio pela imagem em um filme cheio de ideias legais que só funcionam no plano do conceito, mas não da narrativa. Ou, nas palavras da personagem de Spoladore: "Isso é lindo na teoria".
Descrita na história apenas como a "voz", a personagem de Spoladore é uma cantora de ópera que conquista um "caçador de talentos" interpretado por Mutarelli. Ao deixar a moça no quarto de hotel onde ela vai se hospedar até conhecer "o maestro", o agente cuja tarefa de encontrar virtuoses musicais termina fazendo um pedido inusitado e, com argumentos que se afundam no misticismo, mas estranhamente beiram o lógico, ele convence a moça de que os dois podem dividir aquele quarto para o resto da vida. Nesse tempo, ela cantaria para ele. Ele contaria histórias para ela. E aí começa uma relação tão palpável quanto à ideia do personagem que vê nas fotografias apocalípticas impressas nos maços de cigarro uma estranha semelhança com cartas de tarô.
A relação dos dois, personagens quase exclusivos no filme - a exceção vai para uma participação sensacional de Betty Gofman -, se constrói no ritmo teatral que o texto exige. Quando entra em cena, Simone Spoladore parece ter acabado de sair da coxia, gesticula largo e fala alto para que as pessoas lá de trás da plateia possam ouvi-la. Mutarelli, talvez por emular ele próprio essa sensação de que o cigarro o ilumina de ideias escuras e escusas e de que o café hidrata sua índole destrutiva, vai bem diante da câmera e, por vezes, nos assusta com sua predisposição para entregar seu corpo ao personagem (vale citar que ele protagoniza em Natimorto uma das cenas mais escatológicas que o cinema nacional já registrou).
A história que serve de base ao filme é tão boa quanto aquelas contadas pontualmente pelo personagem de Mutarelli. "Daria um livro", diz a moça da "voz". E o problema está justamente aí. Esse fascínio pelos ricos elementos literários do texto transforma o filme em uma obra pesada que, com uma direção de arte retrô, uma edição cheia de efeitos videoclípticos e marcações de cenas matemáticas, peca por transformar o excesso em mensagem, a palavra em pedra.
Filmado quase todo em um só ambiente, o primeiro longa de ficção de Paulo Machline se projeta como um texto de Dostoiévski emoldurado pela imagem daquele aplicativo tão popular do iPhone, o Instagram. O problema aqui é que a roupagem moderna fala mais alto que esta fábula autodestrutiva.