Martin Scorsese procura Deus e atinge a graça espiritual em livro sobre fé e pecado
Em 'Diálogos sobre a Fé', o cineasta revisita conceitos religiosos de filmes como 'A Última Tentação de Cristo' e 'Silêncio' em conversas com o padre Antonio Spadaro; publicação também traz trecho inédito de roteiro de possível novo filme sobre Jesus
A carreira de Martin Scorsese é marcada pela linha tênue entre pecado e redenção. De Caminhos Perigosos (1973) a Assassinos da Lua das Flores (2023), o cineasta americano usou a violência, a religiosidade e os dilemas éticos para investigar os grandes conflitos da condição humana.
A imersão espiritual do diretor, é claro, está explicitada em sua chamada Trilogia da Fé, que engloba o controverso A Última Tentação de Cristo (1988), acusado de blasfêmia por cristãos fanáticos; Kundun (1999), no qual explorou o budismo tibetano e retratou Dalai Lama; e Silêncio (2016), adaptação do romance de Shusaku Endo no qual questionou o sentido do martírio ao mostrar a jornada de missionários que enfrentaram perseguição no Japão do século 17.
Agora, aos 83 anos, Scorsese alcançou a graça. Após anos de vício em cocaína, casamentos problemáticos e tensões nos sets de filmagem, ele chegou a um patamar de serenidade registrado no recém-lançado livro Diálogos sobre a Fé (Record), nascido a partir de conversas profundas com o padre e jornalista italiano Antonio Spadaro.
A publicação de pouco mais de 100 páginas funciona como um perfeito complemento ao seriado documental de cinco partes O Lendário Martin Scorsese (e, mais especificamente, ao episódio Santo/Pecador), lançado no streaming pela Apple TV em outubro.
A produção biográfica dirigida por Rebecca Miller, entre tantos méritos, desvendou a infância dura do pequeno Marty, à sombra da Máfia nas ruas lúgubres de Little Italy, e isolada de outras crianças devido a um grave quadro de asma. Criado no seio de uma família católica, ele frequentou um seminário e cogitou seriamente se tornar um padre antes de encontrar sua voz no cinema.
Deus e o mundo intangível
No livro de tom confessional, Scorsese abre o coração. O artista, acima de tudo, se interessa pela maneira como as pessoas percebem Deus e o mundo intangível. Ele diz que a crença de que existam explicações científicas para todos os mistérios da vida é pura ingenuidade.
Obcecado em olhar o bem e o mal em nós, ele explica seu apreço por retratar as maldades do ser humano, característica tão bem cristalizada nos filmes de gângsteres Os Bons Companheiros (1990), Os Infiltrados (2006) e O Irlandês (2019). "A violência é a profanação da vida. É algo que fazemos. Retratar isso é importante para não cometermos o erro de pensar que a violência é algo que está nos outros", aponta.
Cristo é toda a humanidade
A amizade com o jesuíta se intensificou quando o cineasta leu A Trama Divina, cujo prefácio foi escrito pelo Papa Francisco. Tocado pelo texto do Santo Padre, Scorsese fez o roteiro de um possível novo filme sobre Cristo e o enviou a Spadaro. Há um trecho inédito do script reproduzido no fim do livro, no qual se destaca a frase "Jesus contém multidões", nessa que é uma referência confessa do diretor a Walt Whitman e Bob Dylan, no sentido de que o Messias é toda a humanidade.
Scorsese afirma que por muito tempo cometeu o erro de achar que estava exprimindo Cristo, mas na verdade se afetara pelo orgulho de sua profissão. Ele conta também que, após fazer o clássico Touro Indomável (1980), quis fazer uma série sobre diferentes santos, mas o projeto não deu certo. Essa energia, no entanto, seria canalizada anos mais tarde para A Última Tentação de Cristo.
Impactado por O Evangelho Segundo São Matheus (1964), de Pier Paolo Pasolini, para ele o "melhor filme sobre Cristo já feito", Martin se interessou em exibir uma versão fictícia da vida de Jesus, mas orientada pela iconografia da Bíblia. "Tentamos mostrar que ele era completamente humano, andava com as piores pessoas e foi condenado por isso", explica, reconhecendo que o longa, realizado sob muita pressão, nunca foi terminado da forma como ele queria.
Em suma, Diálogos sobre a Fé sintetiza a jornada do inferno ao céu de um homem genial que transbordou todas as suas dúvidas, amores e temores por meio de arte elevada, do mais alto nível.
Diálogos sobre a Fé
- Autores: Martin Scorsese e Antonio Spadaro
- Tradução: Aline Leal
- Editora: Record (142 págs.; R$ 53 e R$ 37 o e-book)