'Edifício Gagarine' transforma prédio em nave espacial
Exibido no Festival de Cannes, filme é o primeiro longa dirigido por Fanny Liatard e Jérémy Trouilh
Após conquistar o feito de ser o primeiro homem a chegar ao espaço, em abril de 1961, o russo Yuri Gagarin se tornou uma celebridade internacional. Tanto que, em 1963, visitou a França para a inauguração de um edifício que levava seu nome: o enorme conjunto habitacional de tijolos vermelhos Cité Gagarine, em Ivry, nos arredores de Paris. É neste cenário que se passa Edifício Gagarine, longa exibido no Festival de Cannes 2020 e que estreou nesta quinta-feira (26) nos cinemas.
Na época, edifícios altos estavam sendo erguidos para “limpar” as favelas da periferia da capital francesa. Com o passar dos anos, essas “utopias coletivas” se tornaram bairros frequentemente estigmatizados e marcados por uma renovação urbana. Neste cenário, somado à deterioração do prédio, o Gagarine foi demolido em agosto de 2019, sob o olhar emocionado dos ex-moradores que haviam sido despejados ou realocados.
Primeiro trabalho na direção dos cineastas Fanny Liatard e Jérémy Trouilh, o longa conta a história de Youri, um adolescente de 16 anos nascido e criado no prédio, que se une aos amigos Diana e Houssan para tentar salvá-lo da demolição. Para ele, o desaparecimento do Gagarine significa, também, a morte de seus sonhos e suas memórias, assim como a perda da comunidade em que cresceu. O universo do Gagarine, com seus 370 apartamentos, era tudo que ele conhecia.
Com o falecimento do pai e o abandono da mãe, Youri não tem para onde ir após o esvaziamento do prédio. Ele resolve, então, permanecer escondido no 7º andar do edifício, e construir a sua própria nave espacial, um mundo paralelo onde pode manter vivas suas memórias de infância e realizar o sonho de ir para o espaço. Com Diana, ex-moradora do prédio, ele vive sua primeira história de amor.
É impressionante como o jovem consegue construir uma estrutura moderna e sustentável para si mesmo, com um sistema de abastecimento de água e energia e plantando seus próprios alimentos. Chega a lembrar o filme Perdido em Marte (2015), em que Matt Damon interpreta um astronauta que consegue sobreviver em outro planeta com suas próprias habilidades.
"Em nossas mentes, Youri, o adolescente, e Gagarine, o prédio, estão em um diálogo ininterrupto um com o outro. Ele foi criado lá e desenvolveu uma imaginação igual a do enorme arranha-céus. Youri ama sua vizinhança. Para ele, o Gagarine não é uma utopia ultrapassada, é o seu presente e o solo do seu futuro. Sair significa perder tudo: abandonar sua família e seu mundo imaginário. Então, ele assume a resistência", contam os diretores.
A primeira hora do filme se arrasta em uma tentativa desesperada de Youri de lutar por uma causa perdida. Com o início da demolição, o longa ganha contornos poéticos que flertam com a fantasia - como o momento em que Youri consegue flutuar pelos andares do edifício como se estivesse no espaço. As cenas finais, em que os moradores observam a tentativa de demolição, são profundamente tocantes.
Mais do que trazer ao debate questões sociais, como a gentrificação de Paris, a desigualdade e o abandono, Edifício Gagarine serve como um registro histórico de um momento, ou, nas palavras dos diretores, de 'um registro eterno de algo que não existe mais'. "Tentamos mostrar que o prédio é importante, mas no final o que resta são as pessoas. A relação com o lugar perdura, aconteça o que acontecer. Isso é o que tentamos capturar e transmitir. Segurando um espelho que reflete a beleza e complexidade dessas vidas”, concluem.