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Compositores eruditos negros: vidas que também importam

7 jul 2020 - 16h13
(atualizado em 7/7/2020 às 07h13)
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No impulso do movimento Black Lives Matter, a tão "branca" cultura ocidental volta a ser reavaliada. Momento oportuno para encontrar compositores de ascendência africana (quase) esquecidos pela história da música.A especulação de que Ludwig van Beethoven talvez fosse negro, que circula há mais de um século, voltou a emergir nas redes sociais nas últimas semanas. Por exemplo, no Twitter sob o hashtag #BeethovenWasBlack?.

 Joseph Bologne escreveu numerosos concertos e foi professor de violino de Maria Antonieta
Joseph Bologne escreveu numerosos concertos e foi professor de violino de Maria Antonieta
Foto: DW / Deutsche Welle

É certo que o gênio alemão do Classicismo musical tinha pele morena e cabelos negros e encaracolados, sendo por vezes chamado "o Espanhol". Seus antepassados vinham da Bélgica Flamenga, antes ocupadas por tropas espanholas que incluíam soldados mouros.

Além disso, Beethoven adorava síncopes e ritmos atravessados, como se encontram também nas tradições da África. Então teoricamente ele poderia ter algum sangue africano nas veias. Porém estudiosos sérios têm repetidamente desbancado tal teoria.

Há muito a política racial infiltra não só a história das artes: ativistas negros já reivindicaram Jesus Cristo e Sócrates para sua etnia. No campo da música, contudo, isso é antes um desserviço à amplitude e profundidade dos gêneros de inspiração africana, dos spirituals ao blues e o jazz, rock e hip-hop. A música com raízes nas tradições negras tem um alcance global, ultrapassando de longe o setor muito mais limitado da arte "clássica", "erudita", "de concerto" ou "séria".

Linguagem negra, artista branco - e vice-versa

Isso não impede que, contrariando todas as circunstâncias, alguns compositores negros tenham tentado estabelecer uma própria voz também no campo erudito. O fato de, até hoje, suas obras serem raramente executadas nas salas de concerto evidencia os obstáculos e preconceitos que enfrentaram. E mostra quanto terreno os promotores de música clássica ainda têm para cobrir.

O padrão se repete por todo o mundo ocidental, e as exceções só confirmam a regra. O primeiro compositor de ascendência africana de que se tem notícia na Europa foi Joseph Bologne, Chevalier de Saint-Georges (1745-1799), natural da colônia francesa Guadalupe. Filho de um fazendeiro branco e uma escrava de 16 anos, ele foi levado para a França ainda jovem.

Além de campeão de esgrima e coronel do Exército republicano durante a Revolução Francesa, Saint-Georges se tornou um virtuoso do violino, tendo dado aulas à rainha Maria Antonieta, e regeu o Concert des Amateurs, considerada a orquestra mais prestigiada da época.

Sua obra inclui diversas óperas e balés, 15 concertos altamente virtuosísticos para violino e orquestra, sinfonias e obras de câmara. Apelidado "Mozart Negro", consta que até mesmo Wofgang Amadeus invejava suas realizações musicais. Porém é inútil procurar qualquer elemento "negro" na arte do Chevalier: trata-se de música europeia para nobres europeus.

No Brasil, embora a herança sonora africana tenha sido extensamente explorada pela escola nacionalista, por nomes que vão de Oscar Lorenzo Fernández e Heitor Villa-Lobos a Francisco Mignone, Radamés Gnattali ou Mozart Camargo Guarnieri, são poucos os compositores identificados como afrodescendentes nos livros de história da música.

Entre as exceções mais notáveis estão o Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que deixou diversas peças sacras e camerísticas; o pianista e maestro Aurélio Cavalcanti (1874-1916); e Francisco Braga (1868-1945), autor do Hino à Bandeira, cuja vasta obra inclui poemas sinfônicos e três óperas.

O século 21 trouxe perspectivas para uma nova geração de compositores afro-brasileiros, inclusive com projeção no cenário internacional, abrindo um capítulo da música erudita brasileira que ainda está sendo escrito.

Aclamação e esquecimento

Nos Estados Unidos, a aspiração negra às salas de concerto e casas de ópera é bem documentada. O primeiro afro-americano citado como "compositor sério" é Scott Joplin (1868-1917), cognominado "Rei do Ragtime" - estilo muito apreciado na virada do século, caracterizado por ritmos sincopados, ou "rasgados" (ragged).

Não contente em elevar esse gênero popular a um alto grau de refinamento (muitos comparam suas peças para piano às valsas de Frédéric Chopin), e ter, por exemplo, seu Maple Leaf Rag tocado em praticamente todo salão de música americano, na época, o filho de um ex-escravo aspirava ao reconhecimento como músico de concerto.

Tendo se defrontado com obstáculos intransponíveis durante a vida, é somente em 1973, através do uso na trilha sonora do filme Golpe de mestre, com Paul Newman e Robert Redford, que as peças de dança de Joplin passam a ser reconsideradas e a receber a devida apreciação musicológica.

Depois desse primeiro empurrão, alguns anos mais tarde sua única ópera, Treemonisha, de 1911, é finalmente estreada. E sua sepultura anônima no bairro nova-iorquino de East Elmhurst recebe uma placa de homenagem. Hoje, Joplin é cultuado como um dos pais do jazz - embora suas obras sejam muito clássicas na forma, conteúdo e harmonia.

Outros músicos de cor, como o britânico Samuel Coleridge-Taylor (1875-1912), apelidado "o Mahler Africano", e os americanos William Grant Still (1895-1978) e William L. Dawson (1899-1990), igualmente procuraram dar identidade étnica a suas obras, integrando nelas elementos de spiritual e gospel.

Contudo, apesar de elogiadas, nenhuma dessas composições se firmou no repertório. A Negro Folk Symphony de Dawson, por exemplo, composta em 1934 (um ano antes de Porgy and Bess, de George Gershwin, a mais famosa "ópera negra"), foi aclamada por um crítico como "a mais distintiva e promissora proclamação sinfônica americana realizada até então". No entanto, após algumas apresentações, desapareceu dos programas de concerto.

Liberdade e igualdade - mas nem tanto assim

"Para começar, tenho duas desvantagens - do sexo e da raça. Sou uma mulher, e tenho algum sangue negro em minhas veias", escrevia em 1943 a compositora Florence B. Price (1887-1953) ao regente Serge Koussevitzky. Mas determinação não lhe faltava: criança-prodígio, publicou sua primeira composição aos 11 anos, e se formou adolescente no Conservatório de New England.

Divorciada e mãe solteira, se mantinha como professora de música e organista de cinemas mudos, além de compor para a publicidade no rádio. Apesar de todas as barreiras, conseguiu chegar até as salas de concerto, também com obras sinfônicas. Um crítico do Chicago Daily News louvou sua Songs to a Dark Virgin como "um dos maiores sucessos imediatos jamais obtidos por uma canção americana".

Mas é sintomático o fato de a "Pátria da Liberdade" ter esperado até 1996 para conceder ao primeiro compositor negro seu mais conceituado prêmio na área cultural, o Pulitzer.

George Walker (1922-2018) foi laureado por Lilacs, para voz e orquestra, sobre um poema de Walt Whitman lembrando a morte de Abraham Lincoln. Aluno do compositor americano Samuel Barber, suas cerca de 100 composições cobrem uma ampla gama de estilos e linguagens, de Claude Debussy e Igor Stravinsky à música atonal e serial.

Em 2020, o Pulitzer de música voltou a ser entregue a um afro-americano, Anthony Davis (*1951), por The Central Park Five, sobre a prisão e condenação injusta de quatro adolescentes negros e um latino em 1989. Os promotores do prêmio a definem como "uma corajosa obra operística, marcada por poderosa escrita vocal e orquestração sensível".

Portanto nem a cor da pele, nem a temática de política racial de sua obra - que inclui títulos como X, The life and times of Malcolm X, Amistad e Wakonda's Dream - parece estar sendo obstáculo para o reconhecimento artístico do também pianista e professor da Universidade de San Diego.

Então, os tempos mudaram para os compositores negros no tão branco mundo da música clássica? Talvez ainda seja cedo para afirmar que sim.

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