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Clássico do Dia: 'A Noite dos Desesperados' retrata uma sociedade em busca de dinheiro e sucesso

Todo dia um filme um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este dirigido por Sydney Pollack, que foi um marco na vida da atriz Jane Fonda

17 ago 2020 - 08h11
(atualizado em 29/10/2020 às 09h47)
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James Poe ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado de 1956 por A Volta ao Mundo em 80 Dias, que também venceu o prêmio de melhor filme do ano. Poe concorreu mais duas vezes ao Oscar de roteiro - por Gata em Teto de Zinco Quente, de Richard Brooks, em 1958, e Uma Voz nas Sombras, de Ralph Nelson, em 1963. Esse, só para lembrar, foi o filme que valeu a Sidney Poitier o primeiro Oscar outorgado a um ator negro. Em 1966, Poe anunciou que estava adquirindo os direitos de They Shoot Horses, Don't They?/A Noite dos Desesperados, e que pretendia estrear na direção adaptando o romance cultuado de Horace McCoy.

Vale lembrar - o livro surgiu em 1935, durante a depressão econômica que se seguiu ao crack na Bolsa de 1929. A época era de crise, o desemprego adquiria níveis astronômicos e, nesse quadro, as maratonas de danças tornaram-se populares. As pessoas dançavam sem parar, até que só restasse um casal no salão para receber o prêmio. Os milhares de dólares faziam toda diferença para os deserdados da terra. O livro retratava com dureza esse universo competitivo e cruel. Poe escreveu o roteiro. Jane Fonda foi contratada para estrelar e Donald Sutherland foi agregado como o mestre de cerimônias. Como protagonista masculino - o par da Gloria de Jane, Robert - havia certo favoritismo da empresa produtora Palomar por Michael Sarrazin, mas também eram citados Alex Cord e Scott Wilson. O estúdio objetou que Poe não possuía experiência para ser diretor de um projeto grande. Foi substituído por Larry Peerce, que obtivera prestígio com O Incidente, mas ele terminou rejeitando a oferta. Pela proximidade com Jane Fonda - eram casados -, o francês Roger Vadim chegou a ser cogitado, mas entrou em cena Sydney Pollack, bem aceito pela estrela, com quem já fizera Descalços no Parque.

Pollack tentou refazer a dupla da adaptação da peça de Neil Simon, oferecendo o papel a Robert Redford, de quem era amigo - connheceram-se e descobriram suas afinidades no set de Obsessão de Matar, de Dennis Sanders, anos antes. O estúdio não aceitou e Sarrazin foi confirmado. Donald Sutherland também caiu fora e Gig Young ficou com o papel que lhe valeria o Oscar de melhor ator coadjuvante. O roteiro de Poe foi desautorizado porque daria um filme de US$ 3 milhões, o estúdio estava investindo a metade. Pollack reescreveu o material com Robert E.Thompson e, entre as oito indicações que A Noite dos Desesperados - título com o qual foi exibido no Brasil - colheu para os prêmios da Academia, em 1969, estavam direção, atriz (Jane), atriz coadjuvante (Susannah York) e roteiro (Poe e Thompson).

Embora tenha vendido apenas 3 mil exemplares no lançamento, They Shoot Horses, Don't They? rapidamente adquiriu prestígio e foi chamado de 'minor classic'. Nenhum outro romance parecia confrontar o público com o horror da época daquele jeito. Logo foram surgindo os clássicos -como Vinhas da Ira, de John Steinbeck, que virou filme de John Ford -, mas o McCoy permanece no horizonte. Encerrava um desafio - algumas vozes diziam que era infilmável. Charles Chaplin, entre outros, havia tentado. Pollack não se intimidou. Talvez a maior ousadia de sua adaptação seja a ausência de preâmbulo. Nenhuma necessidade de cinejornal ou letreiro para contextualizar. De cara, o espectador é jogado no claustrofóbico cenário do salão, uma réplica perfeita do Aragon Ballroom de Lick Pier. "Yousa, yousa, yousa", incentiva o mestre de cerimônias. Os pares que, no começo, encaram a maratona cheios de expectativa vão se desvitalizando, reduzidos a zumbis cansados que dormem de pé, ou são arrastados pelos parceiros - como Glória arrasta Robert. Viram bonecas mecânicas e Rocky, o apresentador, tenta manter o ritmo - "Rodando, rodando e lá vamos nós. Só um casal de vocês vai levar o grande prêmio. Mas não é esse o american way?".

O espírito americano - o modus operandi de toda uma sociedade, que valoriza, acima de tudo, sucesso e dinheiro - entrou em crise nos escombros que virara a 'América', sob a grande depressão. Graças à contrapartida social do New Deal, o país reergueu-se economicamente, virou uma potência mundial, mas, no fim dos anos 1960, tudo estava sendo contestado. No pós-Maio de 68, o repúdio à Guerra do Vietnã incendiava os campi e crescia nas ruas. A volta a Horace McCoy tinha algo de apocalíptico. Os cem casais reunidos no ballroom ofereciam, não apenas um triste espetáculo da miséria humana, mas também, e principalmente, o microcosmo de funcionamento do capitalismo que mercantiliza as pessoas. Na maratona dos desesperados, elas são desqualificadas e desumanizadas. O sonhado prêmio vai para o espaço quando os últimos casais são eliminados. A grande interrogação - mas não se matam cavalos? - torna-se assustadoramente real. O fim da linha traz desolação e morte. Não existem vencedores, somente perdedores e parcos sobreviventes.

Para seguir falando sobre A Noite dos Desesperados, é preciso encarar as atrizes. Na miséria que é o mundo, o ballroom é um espaço de sonho. Face à miséria de suas vidas, Hollywood fazia as pessoas sonharem. Cartazes no grande salão anunciam Grande Hotel, de Edmund Goulding, a quintessência do glamour hollywoodiano, com Greta Garbo. Alice/Susannah York adota um vidual à Jean Harlow. No fundo, espera ser descoberta por algum caçador de talentos, e Rocky estimula a fantasia ao anunciar que, entre o público está o produtor e diretor Mervyn LeRoy, considerado um dos mais importantes dos anos 1930 e um dos luminares dos dramas sociais (e de gângsteres) da Warner, na época. A própria Gloria só tenta a maratona porque seu temperamento a impede de buscar a sobrevivência trabalhando como extra em Hollywood. Uma cena expõe como é diferente do frágil e romântico Robert.

Enquanto dançam, ele tenta criar um clima evocando certa cena com Anita Louise e Richard Cromwell, que se lembra de ter visto. Robert fornece a chave, como no livro. No McCoy, é o narrador subjetivo. No Pollack, o passado surge por meio de flashes que o iluminam e flashforwards que antecipam o futuro. Essas cenas breves são somadas ao relato que avança em bloco, repetindo o procedimento que o diretor já adotara no precedente A Defesa do Castelo, de 1968. Se Alice é a alienação, Gloria é a consciência do horror que Rocky personifica. Com um tanto de cinismo e outro de desgosto profundo - nojo -, ele tenta manter andando a roda da fortuna. Após o suicídio travestido de assassinato, Rocky não cede e, ao microfone, lança a derradeira pergunta - "Quanto tempo eles ainda vão aguentar?" Tudo é obra de Pollack e Thompson, que se afastaram bastante do roteiro de Poe, a ponto de esse, já afastado da direção, ter brigado na Writers Guild para manter o crédito.

Entre as mudanças efetuadas, Poe propunha um happy end por meio da vitória da grávida, diante da desistência de Gloria. Não apenas - Poe também impregnou Alice de uma aura à Blanche Dubois, a célebre heroína de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, e no seu gran finale ela dançava nua no salão. Com certeza, teria sido outro filme, diluindo a alegoria da condição humana de McCoy, que muitos críticos comparam ao niilismo de Albert Camus em sua obra-prima, O Estrangeiro. Gloria foi uma personagem definidora para Jane. Ela pertencia à realeza de Hollywood, filha de um grande astro (Henry Fonda) e de uma socialite de Nova York (Frances Seymour Ford). A mãe era tão chique que deu à filha o nome de batismo de Lady Jane. A garota estudou em Vassar, uma universidade de elite. Os primeiros papeis em Hollywood eram clonados nela. Na França, virou mito sexual com Vadim, e a vasta cabeleira de Barbarella virou uma espécie de símbolo. O cabelo curto de Glória marcou uma ruptura de Jane com a própria imagem. Na verdade, representou algo mais.

A própria Jane contou que descobriu em Gloria, ao dar vida à personagem, uma parte de si mesma que desconhecia. Entregou-se, de corpo e alma. Como consequência, surgiu a nova mulher. A Jane feminista que virou defensora dos direitos da mulher, opositora da Guerra do Vietnã. Se o pai era um liberal pogressista, a filha virou uma radical. Mesmo com risco de ser taxada de inimiga, foi a Hanói - hoje Cidade Ho Chi Minh -, ao coração do inimigo, e voltou de lá usando o chapéu cônico. Hanoi Jane. As filmagens se prolongaram por quase quatro meses, de 17 de fevereiro até junho de 1969, e Jane admitiu que foram as mais extenuantes de sua carreira. Levava trabalho para casa, no sentido de que não conseguia desavencilhar-se da personagem. O cansaço atingiu o próprio Pollack, que todo dia buscava formas para reproduzir na tela o clima de degradação que se estabelecia no salão. No limite, ele próprio operava a câmera na mão, deslizando de skate entre os dançarinos.

A essa altura, os custos se haviam elevado a US$ 4,5 milhões e o filme sofria a maldição do livro, que vendeu tão pouco. Rendeu US$ 5,9 milhões nos cinemas dos EUA, quando deveria faturar mais que o dobro para sair do prejuízo. As críticas, porém, foram consagradoras e A Noite dos Desesperados virou, a exemplo do próprio livro, um dos filmes mais críticos da época. Foi decisivo para boa parte dos envolvidos. Pollack faria, a seguir, Jeremiah Johnson/Mais Forte Que a Vingança, retomando a parceria com Robert Redford, que foi confirmada numa série de obras bem-sucedidas, incluindo Entre Dois Amores, que venceu os Oscars de filme e direção nos anos 1980. Seus grandes filmes abordam os mitos fundadores.

Jane recebeu o primeiro Oscar em 1971, por Klute, o Passado Condena, de Alan J. Pakula. Já era Hanoi Jane, mas não usou a vitrine da Academia para protestar."Teria muita coisa para dizer, mas não o farei essa noite", iniciou seu elegante discurso de agradecimento. Susannah foi melhor atriz em Cannes, em 1972, por um filme de Robert Altman, Imagens. Justamente Cannes - em 1970, A Noite dos Desesperados integrou a seleção norte-americana, fortíssima, no 23.º festival. Passou fora de concurso. Só para lembrar, foi o ano em que M.A.S.H., de Robert Altman, levou a Palma de Ouro, outorgada pelo júri presidido pelo escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias, que havia vencido o Nobel de Literatura de 1967. No Oscar, o Pollack não teve chance. Era o ano de Perdidos da Noite, e o midnight cowboy de John Schlesinger fez a festa na premiação da Academia.

Onde assistir:

  • Oldflix
Estadão
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