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A cidade de Veneza ainda tem salvação?

Joia da Itália é acossada por marés altas e excesso de turistas

11 ago 2022 - 08h09
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Por Lucas Rizzi - Veneza, 12 de novembro de 2019. Por volta de 22h50, uma repentina inundação cobre mais de 80% do solo do centro histórico da cidade e inicia um corre-corre para proteger casas, lojas, restaurantes e edifícios públicos da água salgada levada pelo Mar Adriático.

Na livraria mais famosa do município, ironicamente chamada "Acqua Alta", o proprietário Luigi Frizzo e sua equipe tentam de tudo para minimizar o prejuízo. Tiram os livros, discos de vinil e revistas das partes mais baixas e os colocam em 10 banheiras e até uma gôndola espalhadas pela loja. Mas a água, incessante e implacável, não para de subir, cobrindo as banheiras e deixando a mercadoria submersa.

Apesar do esforço, o saldo da enchente é de cerca de 50 mil volumes destruídos e uma sensação de impotência frente a um problema crônico em Veneza. "A água entrou nas banheiras e molhou os livros. Subiu muito rápido, não houve tempo para salvá-los", conta Frizzo, em entrevista por telefone à ANSA.

Cidade alagada

A inundação de 12 de novembro foi a segunda maior na história da cidade, com 187 centímetros acima do nível médio da água na Lagoa de Veneza, perdendo apenas para os 194 registrados em uma enchente em 1966.

Em somente cinco dias, a cidade contabilizaria quatro marés superiores a 140 centímetros, um fato inédito para uma única semana, um único mês e até um único ano. "Fazia 50 anos que não tínhamos uma maré tão alta, nos pegou desprevenidos", acrescenta o dono da livraria.

O centro da capital do Vêneto se distribui por ilhas situadas na Lagoa de Veneza, que sofre regularmente com a "acqua alta". Mais comum entre o fim do outono e o início do inverno europeu, esse fenômeno ocorre quando o nível do Mar Adriático sobe e invade a área lagunar, inundando a parte mais famosa da cidade.

A solução encontrada para combater o problema é o sistema "Mose", acrônimo de "Módulo Experimental Eletromecânico" e que também remete ao personagem bíblico Moisés (Mosè, em italiano). O projeto foi iniciado em 2003, mas escândalos de corrupção adiaram o fim das obras para dezembro de 2021, ao custo de 5,5 bilhões de euros.

O sistema se baseia em uma rede de comportas móveis instaladas nos três acessos à Lagoa de Veneza e que serão acionadas sempre que a maré superar os 110 centímetros, evitando que o centro histórico fique debaixo d'água.

Em entrevista à ANSA, o engenheiro Alberto Scotti, que projetou o Mose há cerca de três décadas, garante que as barreiras são dimensionadas para resistir a inundações de até três metros e são a melhor solução para salvar Veneza da "acqua alta". "Você não faz ideia do tanto de alternativas que estudei, de todos os tipos. Eu me convenci, de modo muito robusto, que não há outra opção", afirma.

A obra é alvo de críticas pelo alto custo, pelos escândalos de corrupção e pelos atrasos na entrega. Além disso, associações ambientalistas questionam sua eficácia, especialmente em um contexto de mudanças climáticas. Dados do Instituto Superior para a Proteção e a Pesquisa Ambiental (Ispra), órgão ligado ao governo da Itália, apontam que o nível médio do mar em Veneza subiu 33 centímetros entre 1872 e 2016.

Segundo Scotti, o limite do Mose é uma elevação marítima em função do efeito estufa de 60 centímetros. A partir desse patamar, as comportas teriam de ser acionadas de forma quase ininterrupta. Desde o início das obras, em 2003, o nível médio do mar cresceu 9,2 centímetros, de acordo com um relatório do Ispra divulgado em 2017.

"Apesar de o sistema poder ter uso frequente, a um certo ponto, se o nível do mar aumenta, o número de vezes se torna tão elevado que seria como fechar toda a barreira, isolando a lagoa. Se houver um aumento do nível do mar de 20 ou 30 centímetros, já serão necessárias outras intervenções para defender a cidade. Obras móveis são fundamentais para eventos excepcionais, mas têm um limite para eventos frequentes", explica o "pai" do Mose.

Inundações

Segundo o centro de previsões de marés da Prefeitura (CPSM), o número de inundações por década vem aumentando de forma consistente: entre 1991 e 2000, Veneza registrou 568 cheias superiores a 80 centímetros (nível mínimo para caracterizar uma "acqua alta"); entre 2001 e 2010, foram 933. Já entre 2011 e 2019, a cidade contabiliza 1022 enchentes, e faltando um ano inteiro para o fim da década.

Na visão de Carlo Giupponi, professor de economia do ambiente na Universidade de Veneza Ca' Foscari, o Mose precisa entrar em funcionamento "o quanto antes", mas deve ser acompanhado de "uma série de intervenções de proteção física da cidade".

 O docente cita como exemplo a elevação de algumas ruas e das margens dos canais. "Um Mose que deva ser utilizado muitas vezes colocaria sob estresse tanto o ecossistema lagunar, limitando o intercâmbio de águas entre a lagoa e o mar, quanto as atividades econômicas ligadas ao porto, mas também poderia exigir custos de manutenção imprevistos", diz.

De acordo com Scotti, a cifra para inspeção, funcionamento e manutenção do sistema é estimada em 35 milhões de euros por ano.

Turismo

Outro fator que contribuiu para o aumento do nível da água na Lagoa de Veneza foi a escavação de canais maiores para a passagem de grandes navios, incluindo os de cruzeiro, o que remete a um problema que também ameaça o futuro da cidade: o turismo de massa.

Veneza tem sido palco de recorrentes protestos contra o excesso de forasteiros e o esvaziamento populacional do centro histórico, que vê comércios tradicionais dando lugar a restaurantes de fast food e lojas de souvenirs. Além disso, imóveis que poderiam servir de moradia são colocados para aluguel no Airbnb.

De acordo com o último Anuário do Turismo divulgado pela Prefeitura de Veneza, o número de visitantes na cidade subiu de 3,23 milhões em 2005 para 5,03 milhões em 2017, um crescimento de mais de 55% em 12 anos.

Por outro lado, o centro histórico de Veneza era lar de 174.808 pessoas em 1951, mas, em 2018, apenas 52.996 habitantes viviam no coração da cidade. Somente nesta década, a região perde em média 856 moradores por ano. Ao mesmo tempo, a população dos bairros continentais de Veneza saltou de 96.966 em 1951 para 179.794 em 2018, o que indica um movimento claro: com o custo de vida no centro cada vez mais caro, os venezianos se deslocam para a terra firme, que oferece preços mais acessíveis.

"Na alta temporada, somos invadidos por turistas ocasionais, em grande parte provenientes de outras regiões italianas e que passam apenas algumas horas em Veneza, sem deixar literalmente nada à cidade. Um raciocínio análogo vale também para grande parte dos passageiros de navios de cruzeiro. O resultado é a proliferação de negócios de souvenirs de baixíssima qualidade, por trás dos quais frequentemente se escondem fenômenos de lavagem de dinheiro sujo", diz Marco Gasparinetti, porta-voz do Gruppo 25 Aprile, que surgiu em 2014, na esteira dos escândalos de corrupção no Mose, e está na linha de frente da luta contra o turismo de massa.

Ele propõe a criação de um limite para a entrada de turistas na cidade, aos moldes do que acontece em outros locais com ecossistema frágil, como Galápagos. "Nós preferimos chamar de 'limite de acolhimento', para ressaltar que a quantidade de turistas se tornou incompatível com a qualidade dos serviços e de acolhimento oferecida a nossos hóspedes, que merecem mais respeito", diz.

Taxa

A Prefeitura implantará em 1º de julho de 2020 uma "taxa de desembarque" de até oito euros para turistas que não pernoitam no centro histórico, mas hoje não há planos para limitar a entrada de visitantes. Para Gasparinetti, a taxa é "inútil" e serve apenas para "fazer caixa". "Preferimos um sistema de reserva obrigatória e gratuita em certos períodos do ano, sobretudo para grupos organizados", acrescenta.

Quanto aos cruzeiros, autoridades municipais, regionais e nacionais discutem há anos um plano para tirar os grandes navios da Bacia de San Marco e do Canal de Giudecca, que atravessam o centro histórico. Mas, apesar de acordos anunciados nos últimos anos, a situação continua indefinida.

Porém nem todos veem os fenômenos turísticos em Veneza como algo negativo. Para Luigi Frizzo, da livraria Acqua Alta, o setor é uma "mina de ouro, um poço de petróleo". "Poderia ser feito mais pelo acolhimento, mas estou contente que venham turistas, nunca é demais para um comerciante", afirma.

Cansado das décadas de discussões sobre o Mose, o livreiro diz apenas torcer para que o sistema consiga controlar as inundações. Enquanto isso, segue resiliente, sem parar, assim como a água que já lhe causou tantos transtornos. "Ainda precisaremos de um pouco de tempo para colocar tudo no lugar, mas, pouco a pouco, vamos conseguir", promete.

Ansa - Brasil   
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