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Chernobyl biológico: o caso do vazamento de antrax de laboratório soviético

Acidente em laboratório de microbiologia militar da União Soviética liberou antrax e matou 66 pessoas e animais em 1979 — surto foi acobertado até os anos 1990

6 mar 2023 - 16h55
(atualizado às 19h04)
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Já faz parte da cultura popular, com referências em filmes, séries e até jogos, o desastre nuclear de Chernobyl, de 1986. Menos famoso, mas ainda preocupante, foi o incidente por vezes chamado de "Chernobyl biológico", quando, em 1979, um patógeno letal — antrax — escapou de um laboratório soviético e matou pelo menos 66 pessoas e animais próximos. Assim como a tragédia radioativa que se seguiu, as autoridades da época buscaram acobertar o acontecido — e conseguiram até os anos 1990.

Segundo os registros da União Soviética, o ocorrido teria sido um surto de antrax intestinal por meio de alimentos, na cidade de Sverdlovsk, em 1979. Fora do país, a mídia só ficaria sabendo da epidemia em 1980, com artigos sendo publicados a esse respeito em periódicos científicos soviéticos de medicina e veterinária mais tarde no mesmo ano. Neles, a atribuição foi dada a carnes contaminadas vindas de animais doentes.

Foto: Janice Haney Carr, Laura Rose/Pixnio / Canaltech

Segredo de estado

Um epidemiologista da época, no entanto, Viktor Romanenko, achava óbvio que os casos não seguiam o padrão e timing que se espera de uma infecção por antrax em alimentos contaminados. Ele teria sido obrigado a tomar parte na farsa, mas acreditava piamente que a infecção só poderia ter sido pelo ar.

Mais para o final da União Soviética, jornais internos começaram a questionar a natureza da epidemia da bactéria, se perguntando se um laboratório de microbiologia militar da cidade não poderia ter algum envolvimento na história. Registros médicos dos pacientes afetados teriam sido destruídos como parte do acobertamento do caso, mas uma equipe investigativa conseguiu recolher notas de autópsias feitas por patologistas locais em 42 pessoas.

Nas notas, havia informações sobre a idade dos infectados, a data na qual os sintomas começaram, quando foram admitidos no hospital e quando vieram a óbito. Além disso, foram encontrados 110 registros médicos com endereços e nomes de pacientes examinados para detecção de intoxicação por antrax, identificando 48 pacientes que teriam morrido em decorrência da infecção.

Com registros em mãos e entrevistas realizadas com membros das famílias ainda vivos, os pesquisadores triangularam um lugar e tempo para cada infecção nos pacientes respectivos, colocando as informações sobre um mapa da cidade de Sverdlovsk. O desenho dos eventos tomou uma forma cônica, e, não por coincidência, com origem no laboratório de microbiologia, se espalhando para sudeste.

Revelando a farsa

Publicando os resultados na revista científica Science, em 1994, os cientistas concluíram que o surto foi causado por uma única liberação do patógeno antrax via aerossol. Isso aconteceu na tarde do dia 2 de abril de 1979, uma segunda-feira. Mais especificamente, a inconstância dos ventos do norte paralelos à zona após o dia 2 de abril sugerem que a maioria — se não todas — as infecções ocorreram pelo escape do antrax, nas palavras dos próprios pesquisadores.

Na Convenção de Armas Biológicas de 1972, que os soviéticos também assinaram, a produção de antrax havia sido proibida, mas ele continuou sendo produzido em laboratórios, o que foi admitido pelo presidente Boris Yeltsin, mais tarde, que colocou a culpa do incidente nos militares — ele teria participado do acobertamento por ser o oficial mais graduado da região. Já em 2016, outros cientistas sequenciaram o DNA de uma cepa do patógeno retirada do corpo de duas vítimas.

Os resultados mostraram que ela tinha ligações próximas com as cepas utilizadas em vacinas pelos soviéticos. Embora se questione a manipulação do Bacillus anthracis pelo país e saibamos que a genética da bactéria foi modificada na URSS, provavelmente para que escapassem de vacinas e antibióticos, não há evidência disso no genoma retirado de Sverdlovsk. Mesmo não sendo utilizada como arma, a cepa foi letal para a população da cidade, sendo o surto mais mortal por inalação de antrax da história.

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Fonte: Science 12bioRxiv 

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