A matemática, desde "Alice no País das Maravilhas" até a inteligência artificial
Avanços matemáticos que "Alice no País das Maravilhas" sutilmente apontava abriram as portas para campos de ponta nos séculos XX e XXI, como a física quântica e a inteligência artificial
Alice segue o coelho branco e cai na toca, sem saber o que a espera no fim daquele abismo. Essa imagem se tornou um símbolo universal: a curiosidade que leva além do bom senso, o impulso de quem ousa olhar para o desconhecido. No século XIX, quando Lewis Carroll escreveu Alice no País das Maravilhas, o mundo também caía em sua própria toca. Grandes avanços científicos geraram a Revolução Industrial que transformaria a própria ciência e também a sociedade. A máquina começava a disputar espaço com o pensamento humano.
Uma das páginas do manuscrito de Alice no País das Maravilhas, que Lewis Carroll apresentou a Alice Liddell em 1864. Conservado na Biblioteca Britânica. Lewis Carroll.
Entre a razão e o absurdo
Lewis Carroll — pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson — foi, antes de escritor, professor de matemática na Inglaterra vitoriana. Sua obra Alice no País das Maravilhas está repleta de elementos matemáticos camuflados por jogos de palavras e situações absurdas.
A queda interminável de Alice pela toca do coelho evoca o conceito de limite chave do cálculo diferencial, enquanto as mudanças abruptas de tamanho e forma que a protagonista experimenta evocam incongruências de proporcionalidade e escala, não presentes na geometria clássica. Alice também recita tabelas de multiplicação impossíveis ("quatro por seis é treze") que só fazem sentido em sistemas de numeração não decimais.
O século XIX foi um período de avanços matemáticos fundamentais com a criação da geometria não euclidiana de Nikolai Lobachevsky e Farkas Bolyai, o desenvolvimento da álgebra abstrata e a teoria dos conjuntos infinitos de Cantor. Além disso, o cálculo diferencial foi sistematizado graças a matemáticos como Cauchy, Riemann e Weierstrass, e conceitos-chave como a álgebra de Boole foram introduzidos. Esses avanços marcaram um antes e um depois, separaram a matemática da intuição física e estabeleceram as bases para a disciplina moderna.
Nesse contexto, a história de Alice é um exercício literário e matemático em que as regras podem mudar sem aviso prévio, imitando o processo de descoberta: avançar por um caminho incerto, onde cada novo passo obriga a repensar as suposições anteriores. Melanie Bayley, em sua análise para a revista New Scientist, argumenta que Carroll não estava apenas brincando com paradoxos: ele lançava uma crítica velada à "modernidade matemática" que, para muitos, era tão inquietante quanto a Rainha de Copas gritando "Que cortem sua cabeça!".
Ilustração de John Tenniel do Rei e da Rainha de Copas no julgamento do Valete de Copas. (Londres: Macmillan and Co. 1890). John Tenniel.
A crítica não era trivial. Como aceitar que um conceito abstrato pudesse ter aplicações reais? Como confiar em geometrias que negavam a intuição do espaço? Carroll transformou magistralmente essa tensão em literatura: o absurdo do País das Maravilhas refletia a perplexidade diante de uma ciência que parecia perder o terreno firme da lógica clássica.
Números imaginários e quatérnios
Durante séculos, os matemáticos acreditaram que um número negativo não podia ter raiz quadrada. Durante o Renascimento, matemáticos italianos como Rafael Bombelli propuseram as raízes quadradas de números negativos na resolução de equações cúbicas, embora por muito tempo a ideia tenha sido vista com ceticismo, pois parecia contradizer as regras da natureza.
No final do século XVIII e início do século XIX, a unidade imaginária, i, foi definida por Leonhard Euler e formalizada por Carl Friedrich Gauss como a raiz quadrada de -1. Isso permitiu ampliar o campo numérico e trabalhar com os chamados números complexos ou imaginários. Embora o próprio Gauss tenha expressado certas dúvidas em seus escritos do final do século XVIII, seu tratado posterior sobre números complexos estabeleceu em grande parte a notação e a terminologia modernas.
Carl Friedrich Gauss (1777-1855). Jensen.
Em 1843, William Rowan Hamilton, buscando estender os números complexos a um número maior de dimensões, introduziu alguns objetos matemáticos que descrevem as rotações em um espaço tridimensional: os quatérnios. Voltando a Alice: na festa do chá do Chapeleiro Maluco, falta um convidado, o Tempo, então eles passam o resto do dia girando e girando. Esta passagem é uma paródia sobre as propriedades dos quatérnios.
Os números imaginários e os quatérnios abriram as portas para campos que seriam fundamentais para o avanço tecnológico dos séculos XX e XXI, como a física quântica, a engenharia elétrica e o controle de sistemas.
Trata-se de um padrão que se repete ao longo da história: todo avanço matemático que implicou uma mudança de perspectiva gerou resistência, mas acabou revelando sua utilidade em avanços tecnológicos e sociais disruptivos. Carroll expressou isso de forma poética: "quem deixa de se questionar, deixa de crescer". A história mostra que a curiosidade — aquela centelha que levou Alice a seguir o coelho — é tanto a semente do progresso quanto da incerteza.
Do outro lado do espelho: a inteligência artificial
Através do espelho, a segunda parte das aventuras de Alice, coloca a protagonista do outro lado de uma superfície aparentemente sólida para entrar em um mundo onde as regras se invertem. Hoje, a tecnologia nos confronta com uma experiência semelhante.
Página de Através do Espelho e o que Alice encontrou lá (1871). John Tenniel.
A inteligência artificial (IA) é talvez o espelho mais inquietante de todos. Ela nasceu do desejo de entender como o ser humano pensa, mas começa a desenvolver lógicas próprias. Modelos capazes de aprender, criar imagens ou redigir textos se multiplicam com uma rapidez que poucos imaginavam. O espanto inicial deu lugar à incerteza: o que veremos quando o espelho nos devolver uma imagem mais persuasiva do que a própria realidade?
Nesse jogo especular, as questões filosóficas e éticas retornam com a força dos paradoxos de Carroll. Se uma máquina pode escrever um poema convincente ou resolver um teorema, onde começa e termina a criatividade humana? Seguimos o coelho branco por curiosidade ou porque o algoritmo nos leva a fazê-lo?
Porque, como diria o Gato de Cheshire: "Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho o levará lá". E na ciência, esse caminho geralmente começa com uma queda livre… em direção ao futuro.
Mª Pilar Vélez Melón não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.