O economista Hans-Dieter Holtzmann defende que um acordo entre Mercosul e União Europeia fortaleceria o multilateralismo, diversificaria mercados e reduziria a dependência econômica de China e Estados Unidos para ambos os blocos.
O economista alemão Hans-Dieter Holtzmann é um entusiasta do acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul. Mesmo com o adiamento da assinatura do acordo, capitaneado por França e Itália, o acordo contribuiria para os dois blocos em diversos setores, que vão do fortalecimento do multilateralismo até uma redução da dependência de China e Estados Unidos.
Holtzmann é diretor de projetos da Fundação Friedrich Naumann para Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A instituição tem perfil liberal e promove cursos no campo da educação civil.
Em entrevista ao Estadão, o economista elencou os impactos econômicos de um acordo. "Em um momento de crescentes tensões geoeconômicas e geopolíticas, a Europa e a Alemanha em particular, precisam de novos mercados e de novos parceiros no mundo", apontou Holtzmann.
O economista avalia que o acordo contribui para a diversificação das relações dos dois blocos. "Se o Mercosul e a Europa trabalharem mais em conjunto, reduziremos a dependência dos Estados Unidos e da China".
A seguir, leia trechos da entrevista, que foi editada para maior clareza e concisão.
Queria começar te perguntando sobre o acordo Mercosul-União Europeia. Quais seriam os impactos econômicos deste acordo?
Acredito que o pilar comercial do acordo é o mais importante para nós, porque reduz tarifas e proporciona novas oportunidades de investimento para os países europeus e o Mercosul. Existem ótimas oportunidades no setor agrícola e também no setor de serviços, já que a Europa precisa melhorar em relação a digitalização.
Os dois países mais importantes da União Europeia -a Alemanha e a França-tem visões diferentes sobre o acordo. Por que a Alemanha quer que o acordo se concretize e a França não?
A economia alemã depende muito da indústria, que é voltada para a exportação. Portanto, para a Alemanha, as oportunidades de mercado para exportar e investir em outros países são muito importantes por conta da situação econômica.
Em um momento de crescentes tensões geoeconômicas e geopolíticas, a Europa e a Alemanha em particular, precisam de novos mercados e de novos parceiros no mundo.
E com todas as relações culturais e históricas entre a Europa e a América Latina, o Mercosul surge como um parceiro natural. Portanto, não vemos o Mercosul como uma ameaça. Vemos como uma oportunidade, do ponto de vista econômico, para mais comércio e investimento, mas também para relações políticas mais estreitas.
Já a França está muito preocupada com o impacto do acordo na agricultura, que contribui com uma fração muito pequena do PIB francês, que é de um dígito. No entanto, do ponto de vista cultural, a agricultura é muito importante para a França e, exatamente por essa razão, a Comissão Europeia negociou salvaguardas adicionais para ajudar os agricultores na França, mas também em outros países, o que é fundamental para lhes fornecer assistência adicional durante o período de transição.
E temos que ver como o presidente Emmanuel Macron decidirá no final, porque ele também vê a oportunidade para as empresas francesas investirem em países como o Brasil. A indústria francesa é muito forte no setor de energia e no setor de serviços públicos. Portanto, existe uma excelente oportunidade para as empresas francesas trabalharem em conjunto com o Brasil na transformação verde do país.
Na sua avaliação, esse acordo é importante para aumentar a presença europeia na América do Sul, já que China e Estados Unidos estão disputando esse espaço?
O acordo é muito importante para diversificar nossos mercados, porque a Alemanha, em particular, dependeu muito da China durante muito tempo, não apenas como mercado, mas também como um país que fornecia importantes recursos naturais, que são essenciais, por exemplo, para a indústria automobilística, como o lítio. Portanto, a estratégia da Alemanha não é de desvinculação, mas sim de redução de riscos.
Nós precisamos de novos mercados e países como o Brasil e a Argentina possuem exatamente os recursos naturais que necessitamos. Assim, podemos reduzir a dependência da China trabalhando mais em conjunto.
Como o senhor avalia o governo do chanceler Friedrich Merz? Ele disse que iria construir o maior Exército da Europa, prometeu que iria aumentar o crescimento econômico da Alemanha e apontou que conseguiria conter o crescimento da extrema direita ao mover o seu partido mais para a direita em temas como imigração e crime
O governo alemão definitivamente tem uma longa lista de tarefas a cumprir. Eles anunciaram uma série de reformas para o outono. Agora estamos em meados de dezembro e o outono já acabou na Alemanha, mas pouca coisa aconteceu.
Isso explica a baixa popularidade de Merz. Apenas 23% dos alemães acham que Merz está fazendo um bom trabalho.
E se você conversar com os jovens na Alemanha, há muita frustração por não termos um governo disruptivo da mesma forma que vemos na Argentina, por exemplo. Precisamos de um governo que tenha coragem para tomar as decisões de reformas que a Alemanha necessita, em termos de digitalização, redução da burocracia, reforma da previdência e um novo sistema tributário.
Nós recebemos feedback de muitas empresas na Alemanha que sofrem muito com a burocracia e acham extremamente difícil fazer negócios no país.
Existe um sentimento na Alemanha de que o governo não está realmente focando nos tópicos certos. Precisamos também de uma melhora no setor habitacional, para que os jovens tenham a oportunidade, como seus pais ou avós tiveram, de poder pagar por um apartamento ou uma casa quando estão se estabelecendo.
A situação econômica está complicada. A Alemanha não tem crescimento há cinco anos.
Então, por isso, as perspectivas de emprego para os jovens não são tão boas quanto costumavam ser.
Como o senhor avalia o avanço do partido Alternativa para a Alemanha (AfD)? Por que este partido tem tanto apoio?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que os eleitores do Alternativa para a Alemanha não votam no partido porque, em sua grande maioria, são fascistas ou radicais.
De acordo com as pesquisas, fica muito claro que a maioria deles vota no Alternativa para a Alemanha como uma forma de rejeição aos partidos tradicionais, porque têm a sensação de que esses partidos não cumpriram seus deveres e não se concentraram nos temas mais importantes: fomentar a economia, garantir um mercado imobiliário que ofereça apartamentos acessíveis e, em terceiro lugar, a integração de estrangeiros na Alemanha.
Esses são os principais temas em todas as pesquisas. Um número crescente de eleitores acredita que o governo não está focando nesses temas e não está oferecendo soluções. É por isso que a AfD tem tanto apoio.
Um governo encabeçado pela AfD seria catastrófico para a União Europeia e para o acordo com o Mercosul?
É muito importante ratificar o acordo agora. O acordo é ótimo para os dois blocos e na Alemanha existe um consenso generalizado entre quase todos os partidos na Alemanha sobre a importância disso.
É possível que fique mais difícil assinar o acordo se o Alternativa para a Alemanha ganhar as eleições. Mas mesmo que eles sejam o partido com a maioria dos votos, não vejo eles conseguindo uma maioria para governar.
Segundo as pesquisas, eles poderiam ter de 25% a 30% dos votos neste momento. Não há outro partido na Alemanha disposto a entrar em uma coalizão com eles. Acredito que estamos bem longe de um governo liderado pelo AfD.
Mas o fato do partido liderar as pesquisas é um cartão amarelo para o atual governo, que precisa focar nas questões-chave dos alemães.
Na sua avaliação, a União Europeia tem dificuldade em lidar com o mundo em que vive atualmente? Com China e EUA em disputa aberta e o multilateralismo em baixa
O acordo UE-Mercosul é um exemplo perfeito do que podemos fazer nesse novo mundo.
Se os países democráticos trabalharem juntos para concordar com um esquema baseado em regras, que apoie o multilateralismo, que mostre que acreditamos nesses valores compartilhados em mercados abertos, nós podemos avançar.
Neste momento, os EUA estão se concentrando mais no protecionismo e nas tarifas e não podemos depender deles. O mesmo se aplica a China, que tem um mercado grande e importante, mas depender demais apenas da China cria novos riscos e vemos que Pequim está usando isso também de forma muito estratégica, ameaçando não fornecer, por exemplo, recursos naturais para países como a Alemanha.
Então, se o Mercosul e a Europa trabalharem mais em conjunto, reduziremos a dependência dos Estados Unidos e da China, embora seja obviamente do nosso interesse ter boas relações com os Estados Unidos e a China.
O bloco europeu parece ter vários problemas neste momento: divisões internas, necessidade de mais gastos com defesa, burocracia, guerra na Ucrânia e a relação com os EUA. Como o bloco pode se manter relevante no cenário atual? O que precisa ser feito e o que pode ser feito em 2026?
Precisamos de mais participação da Europa nos grandes temas.
Em primeiro lugar, quando se trata de defesa e segurança, o modelo do passado, em que os Estados Unidos garantiam a segurança da Europa, os chineses compravam nossos carros e a Rússia fornecia gás barato, obviamente não se aplica mais.
Portanto, precisamos trabalhar mais em conjunto. Precisamos de uma união de defesa e segurança do continente, que inclua também o Reino Unido.
O nosso setor de defesa é muito fragmentado e cada país compra armamentos de seus fornecedores nacionais. É preciso de uma perspectiva europeia sobre isso para produzir mais, com mais orçamento.
Os Estados Unidos não estão mais aqui para cuidar dos nossos interesses, o que é justo, e é um processo que acontece desde antes de Donald Trump.
Precisamos de mais diversificação no setor de energia. Na Alemanha, por exemplo, dependemos demais do gás barato da Rússia e pagamos um preço alto por isso agora, depois da terrível invasão da Ucrânia por Moscou.
O Mercosul pode ajudar a Europa na questão de energia. Na semana passada, houve um acordo entre empresas argentinas e alemãs sobre a exportação de gás natural liquefeito. Então precisamos trabalhar para que a Europa esteja presente nos grandes temas e fique menos em apuros.