Mourão 'bombeiro' ganha espaço na ala militar durante crise

Com aval de integrantes das Forças Armadas, vice se dissocia, em público, do discurso de Bolsonaro pelo fim da quarentena

30 mar 2020 - 05h11
(atualizado às 07h19)

BRASÍLIA — A pandemia do coronavírus levou o vice-presidente Hamilton Mourão de volta ao posto de "bombeiro" de crises do Planalto. Mourão foi o único dos generais quatro estrelas que despacham no Palácio a se dissociar, em público, do discurso do presidente Jair Bolsonaro pelo fim da quarentena. Desta vez, porém, a saída do vice do banco de reserva teve o aval dos representantes mais influentes das Forças Armadas, que condenaram o ataque a governadores e demonstraram preocupação com os panelaços e com o impacto da ofensiva de romper com a estratégia mundial de combate à doença.

Presidente Jair Bolsonaro e vice-presidente Hamilton Mourão participam de cerimônia em Brasília
28/03/2019
REUTERS/Ueslei Marcelino
Presidente Jair Bolsonaro e vice-presidente Hamilton Mourão participam de cerimônia em Brasília 28/03/2019 REUTERS/Ueslei Marcelino
Foto: Reuters

Mourão se apresentou como bombeiro, em contraposição a um Bolsonaro incendiário, após repercussões negativas ao pronunciamento do presidente, na terça-feira, 24, contra o isolamento da população. Ao chamar o novo coronavírus de "gripezinha" e "resfriadinho", em cadeia de rádio e TV, Bolsonaro provocou críticas de todos os lados, foi bombardeado nas redes sociais e levou até aliados de primeira hora, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), a romper com ele. Até ali, 46 brasileiros haviam morrido com coronavírus.

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Num primeiro momento, o pronunciamento de Bolsonaro foi avaliado pelos militares como errado na forma, mas correto ao destacar as consequências econômicas das medidas de isolamento. Mas o discurso sincronizado da caserna e do governo, depois que Bolsonaro enquadrou até o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não durou 24 horas. "A posição do nosso governo, por enquanto, é uma só: o isolamento e o distanciamento social", afirmou Mourão, que, naquele momento, era a única voz dissonante em público.

A partir daí, militares começaram a manifestar incômodo com a tática de confronto adotada por Bolsonaro ao desqualificar medidas anunciadas por governadores para evitar o contágio pelo coronavírus. Àquela altura, o número de vítimas fatais era de 56 pessoas. Até a publicação dessa reportagem, já chegava a 136, com 4.256 infectados.

Ao Estado, Mourão disse ser necessário um "equilíbrio" entre medidas de combate ao avanço da doença e a situação da economia. "Continuo no meu papel de vice-presidente. Atuo como conselheiro, busco levantar linhas de ação para que decisões sejam tomadas. No mais é uma eterna busca do equilíbrio entre salvar vidas, impedir uma queda fervorosa do PIB e manter a parcela dos empregos existentes", afirmou. Sua fala, mais uma vez, é um contraponto a Bolsonaro, que ontem foi para as ruas menosprezar a doença e defender a volta do País à normalidade.

Diante do Palácio da Alvorada, na última quinta-feira, Bolsonaro deixou escapar o incômodo com a independência do vice. "O Mourão tem dado opiniões, é uma pessoa que está do meu lado ali. É o reserva de vocês. Se eu empacotar aí, vocês vão ter que engolir o Mourão. É uma boa pessoa, podem ter certeza", ironizou.

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Tosco

No dia seguinte, Bolsonaro voltou ao assunto. "Com todo o respeito ao Mourão, mas ele é mais tosco do que eu. Muito mais tosco. Não é porque é gaúcho, não. Alguns falam que eu sou um cara muito cordial perto do Mourão", afirmou o presidente ao apresentador José Luiz Datena, da TV Band.

Embora em tom descontraído, a declaração de Bolsonaro teve o objetivo de reacender um velho temor de setores da política, do Judiciário e da opinião pública. O receio ocorre porque, em um eventual afastamento do presidente, quem assume a Presidência, pela Constituição, é o vice. Nesse caso haveria, de fato, um governo militar, embora o atual conte com oito dos 22 ministérios nas mãos de oriundos das Forças Armadas. O número não engloba a centena de postos ocupados por militares em segundo e terceiro escalões.

Apesar das desavenças do passado, o tom adotado agora por Bolsonaro em relação a Mourão foi absorvido por suas redes sociais como uma parceria do tipo "morde e assopra". Ao contrário de outras vezes, os principais influenciadores digitais do bolsonarismo, incluindo aí os filhos do presidente, estão quietos, por enquanto, sobre os movimentos do vice.

A primeira missão de "bombeiro" do vice, nesta temporada de crises, foi para desembaraçar o rolo diplomático entre o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o embaixador chinês Yang Wanming. No último dia 18, o filho "03" do presidente acusou a China, por meio do Twitter, de ter causado a propagação do coronavírus. O diplomata rebateu.

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Mourão assumiu a dianteira para dizer que Eduardo não falava pelo governo, apesar do parentesco. "Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum. É só por causa do sobrenome. Não é a opinião do governo".

Durante a áspera discussão entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), na quarta-feira, Mourão também estava presente e fez sinal de reprovação com a cabeça, como se não concordasse com o presidente. Afirmou, depois, que todos se enganaram na "interpretação dos sinais corporais". Mas não escondeu o "constrangimento" ao afirmar que divergências políticas devem agora ser evitadas.

Queimadas

Na prática, Mourão ressurge quando há confluência de confusões. Em abril do ano passado, por exemplo, ele provocou a fúria de Bolsonaro e de seus filhos por adotar estilo mais ameno com a oposição e a imprensa. O vereador Carlos Bolsonaro (PSC) e o guru da família, Olavo de Carvalho, lideraram, então, um linchamento virtual.

O vice recuou. Só saiu da "geladeira" nove meses depois, na crise envolvendo as queimadas na Amazônia, quando Bolsonaro o escalou para fazer o contraponto ao discurso pró-desmatamento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

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Mourão teve, ainda, a missão de pôr panos quentes na disputa velada de Bolsonaro com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, quando o presidente, enciumado com a popularidade do ex-juiz da Lava Jato, chegou a cogitar a divisão da pasta comandada por ele em duas.

Além de ajudar na construção de ações para enfrentar as queimadas, que recomeçam no meio do ano, Mourão direcionará seu trabalho para o período compreendido entre o fim de abril e junho, quando dificuldades de logística poderão atingir o ápice.

Até lá, o general vai continuar com discurso de quem apaga incêndios políticos, prega uma relação profissional com a imprensa e atua para evitar estragos na imagem de Bolsonaro. O uso de "bombeiros" é uma tradição militar para tempos de contar feridos numa batalha e preparar as armas para outra. No atual governo, a diferença é que a missão é comandada pelo primeiro nome da linha de sucessão.

O uso de "bombeiros" é uma tradição militar para tempos de contar feridos numa batalha e preparar as armas para outra. No atual governo, a diferença é que a missão é comandada pelo primeiro nome da linha de sucessão.

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