O cálculo de Lula para lidar com crise entre Trump e Maduro

Um auxiliar do presidente Lula, com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado, classificou o momento como "delicado" e disse que o governo brasileiro não quer correr o risco de prejudicar as negociações sobre o tarifaço com os norte-americanos por conta da situação na Venezuela.

6 dez 2025 - 06h51
(atualizado às 07h12)
Resumo
O governo de Lula adota postura cautelosa frente à crise entre Trump e Maduro, considerando fatores como negociações comerciais com os EUA, papel de mediador na região, desarticulação política latino-americana e incertezas sobre uma eventual sucessão de poder na Venezuela.
Nos últimos meses, Lula passou a evitar críticas públicas às ações dos Estados Unidos na Venezuela e começou a falar diretamente com Trump sobre o assunto
Nos últimos meses, Lula passou a evitar críticas públicas às ações dos Estados Unidos na Venezuela e começou a falar diretamente com Trump sobre o assunto
Foto: BBC/Getty / BBC News Brasil

Usando fones de ouvido e segurando um boné com o emblema do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se arriscou no "portunhol" para fazer um apelo em um programa de TV na quinta-feira, 4.

"Povo do Brasil! Saiam às ruas para apoiar a Venezuela em sua luta pela paz e soberania. Eu falo a vocês toda a verdade. Nós temos direito à paz com soberania. Que viva o Brasil".

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O pedido de Maduro acontece em meio à ofensiva dos Estados Unidos em relação ao país. Nos últimos três meses, o governo do presidente Donald Trump vem usando o suposto combate a narcotraficantes como justificativa para o aumento da presença militar nas proximidades da Venezuela.

Aviões de caça, 15 mil homens e navios militares, incluindo o maior porta-aviões a Marinha norte-americana, foram deslocados para a região do Caribe, num movimento visto por analistas como de pressão contra o governo de Nicolás Maduro.

Desde então, militares dos Estados Unidos já realizaram mais de 20 ataques aéreos a embarcações que supostamente carregavam drogas em águas próximas ao litoral venezuelano.

Na semana passada, o norte-americano chegou a anunciar em redes sociais o fechamento do espaço aéreo venezuelano, mesmo sem ter autorização formal para isso.

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Mas o apelo do líder venezuelano, no entanto, não apenas não parece ter mobilizado as ruas brasileiras, como também não mobilizou, pelo menos publicamente, um antigo aliado: o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Nos últimos meses, o presidente Lula, que já defendeu Maduro pessoalmente durante sua viagem ao Brasil, em 2023, vem adotando uma postura mais discreta em relação ao regime do país vizinho em meio ao aumento das tensões entre a Venezuela e os Estados Unidos.

No dia 8 de setembro, Lula criticou abertamente a presença de tropas norte-americanas nas proximidades da Venezuela durante um discurso da cúpula virtual dos Brics, grupo de 11 economias emergentes do qual o Brasil faz parte.

"A presença de forças armadas da maior potência do mundo no Mar do Caribe é fator de tensão incompatível com a vocação pacífica da região", disse ele.

Duas semanas mais tarde, no dia 23 de setembro, foi a vez de mencionar a crise, mas citando a Venezuela em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.

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"Usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento. Outras partes do planeta já testemunharam intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia evitar, com graves consequências humanitárias. A via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela", disse o presidente.

Com o passar dos meses, a situação mudou. A aproximação de Lula com Donald Trump, iniciada justamente durante a passagem do presidente brasileiro por Nova York, deu início a uma postura diferente. Em vez de criticar publicamente a presença dos Estados Unidos na região, Lula trata do assunto reservadamente nas conversas que manteve com Trump.

Duas fontes do governo brasileiro ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmam que o presidente Lula tratou da questão venezuelana tanto na conversa presencial que teve com Trump na Malásia, em outubro, quanto nos dois telefonemas que teve com o norte-americano mais recentemente.

Sua passagem pela Cúpula de chefes de Estado da Comunidade dos Estados Caribenhos e Latino-Americanos (CELAC) e da União Europeia, em novembro, na Colômbia, foi um exemplo dessa mudança de tom.

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"A ameaça de uso da força militar voltou a fazer parte do cotidiano da América Latina e do Caribe. Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar intervenções ilegais", disse Lula sem citar nem a Venezuela e nem os Estados Unidos.

Nem mesmo a ordem de fechamento do espaço aéreo venezuelano dada por Trump fez com que o presidente se manifestasse publicamente sobre o assunto, apesar de o assessor especial para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, considerar o fato como grave.

"É um ato de guerra", disse Amorim à BBC News Brasil.

Mas o que estaria por trás dessa mudança no tom de Lula em relação às ações de Trump em um país tão próximo ao Brasil?

Fontes do governo brasileiro ouvidos pela BBC New Brasil em caráter reservado e especialistas em relações internacionais afirmam que o cálculo do governo Lula em relação à crise da Venezuela com os Estados Unidos levam pelo menos quatro elementos em consideração: as negociações sobre o tarifaço imposto pelos Estados Unidos ao Brasil; o desejo de manter o Brasil como um interlocutor para evitar uma escalada militar na região; a desarticulação política na América Latina; e as incertezas sobre os riscos de uma eventual sucessão de Maduro.

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O porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior da Marinha americana, estava a cerca de 120 km ao sul da República Dominicana em 27/11, aproximadamente 700km da costa venezuelana
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Tarifaço na mesa

Um dos principais motivos por trás da cautela adotada pelo Brasil no momento em relação à ação norte-americana sobre a Venezuela são as negociações em curso com o governo de Donald Trump sobre o tarifaço imposto pelos Estados Unidos a produtos brasileiros.

Um auxiliar do presidente Lula, com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado, classificou o momento como "delicado" e que o governo brasileiro não quer correr o risco de prejudicar as negociações sobre o tarifaço com os norte-americanos por conta da situação na Venezuela.

A situação, no entanto, pode mudar caso haja ações militares norte-americanas dentro do território venezuelano.

Segundo ele, o momento pede que o Brasil seja "pragmático".

Em julho, o governo dos Estados Unidos anunciou sobretaxas de 40% a produtos brasileiros justificadas, em parte, pelo julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado democrático de direito.

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Na época, Trump chamou o julgamento de "caça às bruxas" que deveria acabar "imediatamente".

O episódio instaurou o que especialistas classificam como a maior crise diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos nos mais de 200 anos de relações entre os dois países.

Nos últimos meses, porém, houve uma aproximação entre Lula e Trump, apesar da condenação e da prisão de Jair Bolsonaro. Desde setembro, os dois presidentes, que nunca haviam se reunido, tiveram dois encontros presenciais. O primeiro foi em Nova York, em setembro. E o segundo em outubro, na Malásia.

Desde então, as negociações sobre as tarifas impostas pelo governo norte-americano, que estavam travadas, voltaram a acontecer. Em 21 de novembro, os Estados Unidos anunciaram a retirada de tarifas de 40% sobre alguns produtos agrícolas brasileiros.

Apesar disso, o governo brasileiro avalia que ainda é preciso avançar nas negociações, especialmente porque as sobretaxas norte-americanas ainda afetam uma série de produtos manufaturados brasileiros exportados para os Estados Unidos, com impacto significativo sobre a atividade industrial nacional.

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Em novembro, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) anunciou que houve uma queda de 28% nas exportações do Brasil em relação ao mesmo mês do ano passado.

A necessidade de avançar nas negociações, aliás, foi tema do telefonema mais recente entre Lula e Trump, que partiu da iniciativa do presidente brasileiro.

"Ainda há outros produtos tarifados que precisam ser discutidos entre os dois países e que o Brasil deseja avançar rápido nessas negociações", disse a nota do governo brasileiro divulgada na semana passada sobre o telefonema.

Os Estados Unidos continuam suas ações contra Nicolás Maduro
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Interlocutor possível

Outro motivo para a cautela do governo brasileiro em relação às investidas norte-americanas sobre a Venezuela é a perspectiva de que o Brasil continue a ser visto como um possível mediador da crise envolvendo o regime de Nicolás Maduro e o governo de Donald Trump.

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Um auxiliar do governo brasileiro ouvido pela BBC News Brasil afirmou que o Brasil não foi apontado pelos Estados Unidos e nem pela Venezuela como mediador do conflito, mas o entendimento é de que, ao evitar um confronto retórico direto com os norte-americanos neste momento, o Brasil conseguiria manter canais de comunicação abertos para discutir a situação do país vizinho com os Estados Unidos e poderia tentar evitar um conflito armado no país, principal temor do governo brasileiro neste momento.

Na avaliação dele, apesar de as ameaças de intervenções terrestres dos Estados Unidos sobre a Venezuela ainda não terem se concretizado e de também não estar claro se elas irão se materializar ou não, esta "arma" ainda estaria "engatilhada e apontada" para a região.

A situação na Venezuela também foi tema do encontro entre Lula e Trump durante o encontro na Malásia. Na ocasião, Lula defendeu que a saída para a crise venezuelana deveria ser diplomática e pacífica.

Durante o encontro, Lula comentou que não falava com Maduro desde as eleições presidenciais no país, em maio do ano passado. Até hoje o Brasil não reconheceu o resultado das eleições.

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As autoridades eleitorais da Venezuela anunciaram Maduro como vencedor, mas a oposição liderada por Maria Corina Machado alega que as atas das urnas apontam a vitória do candidato oposicionista Edmundo Gonzalez, que agora vive no exílio na Espanha.

Apesar de, oficialmente, o governo brasileiro não atuar como mediador da crise na Venezuela, o país já exerceu papel semelhante em outras situações. A mais recente delas aconteceu em 2023, quando o Brasil foi um dos principais articuladores dos chamados "Acordos de Barbados", em que o governo Maduro se comprometeu a promover condições justas durante as eleições de 2024.

A confiança do Brasil em Maduro, no entanto, ficou abalada depois que o presidente venezuelano deixou de cumprir a promessa de apresentar as atas das urnas das eleições do ano passado.

A postura do Brasil fez com que o assessor da Presidência da República para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, fosse criticado pelo presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Jorge Rodriguez, que pediu que o diplomata brasileiro fosse declarado "persona non grata" — termo usado para dizer que alguém não é bem-vindo e, na linguagem diplomática, é um procedimento considerado drástico.

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O presidente da Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado, Nelsinho Trad (PSD-MS), disse que a quebra de confiança gerada pelas eleições na Venezuela afetaram a postura do governo brasileiro na defesa do país vizinho.

"O governo começou a se distanciar quando Maduro não cumpriu a promessa de apresentar as atas das urnas. Naquele momento, houve um ponto de inflexão e a gente percebe que, hoje, as relações são muito distantes, apesar de o Itamaraty manter nosso pessoal lá", disse o parlamentar à BBC News Brasil.

América Latina desarticulada

O terceiro motivo pelo qual o Brasil vem evitando uma postura mais assertiva em relação à Venezuela é o atual cenário político na América Latina.

Segundo um auxiliar do presidente Lula, a região estaria vivendo um momento de "desarticulação política" que impede uma posição mais contundente do país em relação à crise venezuelana.

Essa desarticulação seria resultado de uma espécie de "racha ideológico" na região a partir da eleição de diversos presidentes de direita em países latino-americanos como na Argentina (Javier Milei), no Paraguai (Santiago Peña), Bolívia (Rodrigo Paz), Equador (Daniel Noboa) e em El Salvador (Nayib Bukele). Alguns deles, como Milei e Bukele, têm demonstrado proximidade com o presidente Trump.

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A professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Carol Pedroso, disse concordar com a avaliação do auxiliar de Lula.

"A total desmobilização regional frente a esse avanço mais agressivo do governo Trump acaba sendo outro determinante para essa postura mais discreta do presidente brasileiro, porque na prática não há respaldo institucional em nível regional para qualquer posição um pouco mais 'afrontosa'", disse à BBC News Brasil.

Segundo Pedroso, esse "racha" fica evidenciado na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), do qual o Brasil faz parte.

"[A Celac], basicamente, só consegue produzir alguns pronunciamentos, mas nenhuma ação efetiva. Um exemplo foi a tímida reação à crise dos deportados no começo do ano, quando boa parte das agressões nem tinham começado", complementa.

Na última reunião da cúpula, realizada em conjunto com a União Europeia, em novembro, o comunicado final não fez nenhuma menção à Venezuela.

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Lula, que também participou da cúpula de chefes de Estado da Celac-União Europeia fez menções veladas à crise, mas não citou diretamente nem os Estados Unidos e nem a Venezuela.

"A ameaça de uso da força militar voltou a fazer parte do cotidiano da América Latina e do Caribe. Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar intervenções ilegais. Somos uma região de paz e queremos permanecer em paz. Democracias não combatem o crime violando o direito internacional", disse.

Riscos da sucessão

O quarto motivo que vem fazendo o Brasil adotar o que a professora Carol Pedroso classificou como "cautela ativa" em relação à Venezuela é a incerteza sobre o futuro da Venezuela diante de uma eventual queda ou renúncia de Nicolás Maduro.

Uma fonte do governo brasileiro com a qual a BBC News Brasil conversou e que pediu anonimato afirmou que há "enorme" preocupação sobre os cenários para o "dia seguinte" da Venezuela sem Maduro.

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Segundo essa fonte, o governo brasileiro não chegou a oferecer asilo e nem a defender a tese de renúncia de Maduro.

Essa tese passou a circular com mais força nos últimos dias depois que a agência Bloomberg noticiou que o empresário brasileiro Joesley Batista se encontrou com Maduro na Venezuela para tentar convencê-lo a renunciar.

Procurado, o governo brasileiro não se pronunciou sobre o caso e não confirmou à BBC News Brasil se tinha conhecimento da viagem.

Para o governo brasileiro, não estaria claro quem teria condições políticas de liderar o país após a saída de Maduro.

Ela afirma que, apesar de ser considerado autoritário, Maduro atuaria como uma espécie de "ponto de equilíbrio" das forças políticas venezuelanas e que sua saída sem planejamento poderia levar a um cenário de caos social no país com riscos de extravasar para o lado brasileiro da fronteira.

Ela mencionou que um "vácuo de poder" na Venezuela poderia gerar uma situação de conflagração semelhante à vista na Líbia após a queda do ditador Muammar Khadafi, morto por rebeldes em 2011.

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Ela disse ainda não acreditar que a líder da oposição venezuelana, Maria Corina Machado, que venceu o prêmio Nobel da Paz neste ano, tenha condições de liderar o país de forma estável caso seja colocada no lugar de Maduro.

Carol Pedroso faz uma avaliação semelhante. De acordo com ela, não estaria sequer claro que os Estados Unidos irão intervir militarmente para a derrubada de todo o regime de Maduro.

Com um histórico de idas e vindas, a política externa de Trump poderia trabalhar para uma solução intermediária, tirando Maduro, mas deixando alguém com ligações com o atual governo e com condições materiais de manter as rédeas do país.

Em meio à toda essa incerteza, o Brasil assumiria um risco ao tomar uma posição neste momento.

"Por conta da enorme incerteza, me parece que o governo brasileiro tem sido excessivamente cauteloso, a ponto inclusive de gerar esse desconforto em parte da esquerda brasileira e latino-americana, por exemplo, que entende que abrindo a 'porteira' da Venezuela, não haveria nada que impedisse os EUA de avançarem para os demais países", conclui a professora.

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