Mortes e protestos no Rio reacendem debate sobre UPPs às vésperas da Copa

24 abr 2014 - 04h38

O caso do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, encontrado morto numa creche da favela Pavão-Pavãozinho na última terça-feira, e os protestos e confrontos violentos que tomaram duas ruas do bairro de Copacabana - resultando em mais uma morte - reacenderam o debate em torno das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) na capital fluminense.

A 49 dias da Copa, o caso e as cenas de barricadas em chamas, tiroteios, e violência acabaram tendo grande destaque na mídia mundial.

Para o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o incidente na favela Pavão-Pavãozinho é mais uma evidência de que o programa das UPPs está em crise.

"O que aconteceu na Pavão-Pavãozinho não é um caso isolado. O programa das UPPs foi recebido como a grande solução para o problema de segurança pública no Rio. Com o tempo, ele foi colocado no piloto automático e agora temos cada vez mais indícios de que precisa ser reavaliado", diz.

O secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame afirmou que os casos de trocas de tiros no Pavão-Pavãozinho e em outras favelas com UPPs seriam uma tentativa do crime organizado de "banalizar" o projeto de polícia pacificadora.

Beltrame usou como exemplo a suspeita da polícia de que os confrontos no Pavão-Pavãozinho teriam sido iniciados devido ao retorno à região do traficante de drogas Adaulto Nascimento Gonçalves, o "Pitbull". Com apoio de uma quadrilha, o criminoso estaria realizando ações para acabar com a tranquilidade e impor o medo entre moradores.

Dançarino do programa Esquenta!, da TV Globo, DG, como era conhecido, morreu vítima de um tiro, segundo informação da própria polícia. A mãe do dançarino, Maria de Fátima, diz que o corpo e os documentos do filho estavam molhados e que ouviu relatos de testemunhas apontando que ele teria sido alvo de tortura, confundido com traficantes durante operação da polícia.

"Não descarto (ação policial), absolutamente. Mas não podemos condená-los de antemão. Várias hipóteses estão sendo examinadas, precisamos de respostas técnicas, não de uma guerra de informação", declarou Beltrame.

O terror que se espalhou por Copacabana por mais de quatro horas na última terça e as reações e cenas do dia seguinte deixam claro, no entanto, que o clima e a dinâmica de pacificação em algumas favelas cariocas está longe do desejado pelo programa das UPPs, iniciado cinco anos atrás.

Crise

Entre os indícios da necessidade de reavaliação do programa de pacificação, como sugere o sociólogo Ignacio Cano, estariam denúncias de abuso por parte da polícia em favelas ocupadas e a onda de ataques contra UPPs. Há confrontos e retomada de espaço pelo tráfico em comunidades importantes, como a Rocinha e o Complexo do Alemão, e a ocupação do Complexo da Maré tem sido alvo de muitas críticas.

Também teve grande repercussão o caso do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, que desapareceu após ser levado para uma UPP na Rocinha e assassinado em julho do ano passado.

Cano explica que o formato do programa não é sustentável a longo prazo e que, se fosse interrompido de forma abrupta, não garantiria a manutenção dos baixos índices de criminalidade.

"Tal como o programa está hoje, se os policiais saíssem de determinadas comunidades, poderíamos ter uma reversão dos avanços na contenção da violência em um curto espaço de tempo, questão de semanas", diz. "Até agora tivemos um foco grande na retomada do controle territorial, mas faltaram iniciativas na área de formação policial, por exemplo."

Outro ponto crítico, segundo o sociólogo, seria a falta de mecanismos institucionais para melhorar a relação entre policiais e moradores das favelas ocupadas.

"Hoje, essa relação depende do comandante da polícia em cada local", diz Cano. "Poderíamos ter, por exemplo, conselhos em que policiais e membros dessas comunidades discutissem juntos regras de convivência."

Para o sociólogo, é natural que a proximidade da Copa aumente a preocupação das autoridades em relação aos ataques contra UPPs.

"Cinco anos atrás, o que ocorreu na Pavão-Pavãozinho nem seria notícia fora do Brasil", diz ele.

"Agora, não só o mundo está de olho no que acontece aqui como sempre há a possibilidade de que incidentes como esse contribuam para ampliar o descontentamento com o problema de segurança pública e inflar protestos."

Tensão e revolta

Um breve giro pelos arredores do Morro Pavão-Pavãozinho no dia seguinte aos confrontos é suficiente para medir o clima na região.

Furgões de emissoras de TV estacionados, lixo pela rua, muitos policiais, tropas do Bope (unidade de elite da polícia militar carioca) subindo pela entrada do morro de tempos em tempos, comércio fechado e olhares apreensivos mostram que a situação ali está longe da normalidade.

Vinicius, jovem morador de Ipanema que não quis informar seu nome verdadeiro, diz que andava de skate quando notou a confusão vinda da direção da entrada do morro.

"Pouco depois de eu chegar aqui na rua, o tumulto começou para valer. Do morro vinham muitas garrafas de vidro e bombinhas, e os policiais revidavam com tiros de fuzil. Achei dez cartuchos depois, só ao redor de onde fiquei encurralado, deitado embaixo de um carro, só ouvindo tiro", diz.

Jorge, de 47 anos, nasceu e cresceu no Pavão-Pavãozinho. Ele vê benefícios na política de pacificação, mas diz que algo mudou nos últimos meses.

"Aceitamos a pacificação, foi uma coisa muito boa. Mas ultimamente a coisa saiu do controle. Os policiais chegam revistando com o fuzil apontado, invadem a sua casa, é demais", conta.

Para ele, a comunidade nos últimos meses tem virado "terra de ninguém" após as 22h.

João, de 47 anos, mora há mais de dez em Copacabana, próximo do acesso ao morro. Ele diz que a prova de que a situação na região tem se deteriorado é que apesar dos altos preços em outros bairros da Zona Sul, os imóveis ali têm se desvalorizado cada vez mais.

"É um absurdo, acho que está pior com a UPP. Eu cheguei aqui por volta de 23h, quando a coisa já tinha se acalmado. E se tivesse chegado às 18h30, 19h? Quem quer voltar de um dia de trabalho e ver a rua em chamas, tiroteio e gente morta na calçada?", questiona.

Identificado como Edilson da Silva dos Santos, o homem morto com um tiro durante os confrontos sofria de problemas mentais e já tinha passagem por um manicômio judiciário.

*Com colaboração de Ruth Costas, da BBC Brasil, em São Paulo.

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