'Ação de Musk é ataque de forças estrangeiras a instituições democráticas do Brasil', afirma ex-secretária de Direitos Digitais

Advogada Estela Aranha afirma que declarações de bilionário mostram que o Brasil precisa de uma regulamentação adequada para as redes sociais com urgência.

8 abr 2024 - 05h11
(atualizado às 07h22)
Elon Musk proferiu ataques ao Judiciário brasileiro e pediu impeachment de ministro
Elon Musk proferiu ataques ao Judiciário brasileiro e pediu impeachment de ministro
Foto: GETTY IMAGES / BBC News Brasil

Ex-secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça, a advogada Estela Aranha vê as recentes ações do bilionário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), como "um ataque de forças políticas estrangeiras de extrema-direita a instituições democráticas do Brasil".

No fim de semana, o empresário fez fortes críticas ao Judiciário brasileiro, em especial ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e ameaçou reativar perfis deletados por decisão da Justiça.

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Musk afirmou que Moraes "deveria renunciar ou sofrer impeachment". O bilionário disse ainda que o ministro "traiu descaradamente e repetidamente a constituição e o povo do Brasil".

Aranha, que até o mês passado liderava a Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça, afirma que o episódio com o bilionário mostra que o Brasil precisa com urgência de uma regulamentação adequada para as redes sociais, além de estabelecer as responsabilidades dessas plataformas.

Ela pontua que a conduta de Musk pode levar, em último caso, à suspensão do X no Brasil. Estela Aranha acredita, inclusive, que esse pode ser um dos objetivos de Musk ao atacar Moraes, "para provocar uma reação mais forte, para escalar o debate."

O dono do X se manifestou contra decisões proferidas por Moraes, entre as quais o bloqueio de perfis alvos de inquéritos que apuram práticas como o compartilhamento de notícias falsas e ataques coordenados a adversários do então presidente Jair Bolsonaro.

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Musk também compartilhou publicações do jornalista americano Michael Shellenberger que mostravam e-mails da equipe jurídica do Twitter sobre pedidos da Justiça brasileira referentes a perfis de investigados nos inquéritos. Shellenberger classificou tais solicitações como violações de liberdade de expressão no país.

Estela Aranha foi secretária de Direitos Digitais no Ministério da Justiça até o mês passado
Foto: FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL / BBC News Brasil

Na noite de domingo (7/4), Moraes reagiu às declarações de Musk e determinou que o bilionário seja investigado. O ministro incluiu o dono do X no inquérito que investiga as milícias digitais e também abriu um novo inquérito para apurar se o empresário cometeu crimes de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime com suas publicações.

Além disso, estabeleceu uma multa diária de R$ 100 mil para cada perfil da rede social que venha a ser desbloqueado, em descumprimento da decisão judicial. E frisou a possível punição aos responsáveis legais pela empresa no Brasil caso isso ocorra.

A reportagem procurou a assessoria de imprensa do X, que respondeu com um e-mail automático pedindo para procurá-los depois, porque estão ocupados.

Depois das ameaças de Musk sobre não cumprir as decisões de Moraes, o perfil oficial do X divulgou em nota que as decisões seriam questionadas judicialmente.

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"A X Corp. foi forçada por decisões judiciais a bloquear determinadas contas populares no Brasil. (…) Somos ameaçados com multas diárias se não cumprirmos a ordem", disse a empresa.

"Não acreditamos que tais ordens estejam de acordo com o Marco Civil da Internet ou com a Constituição Federal do Brasil e contestaremos legalmente as ordens no que for possível", continuou a nota.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Estela Aranha.

Alexandre de Moraes determinou investigação contra Musk após ataque de bilionário
Foto: REUTERS / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Como você avalia essas recentes declarações de Musk?

Estela Aranha - O Musk está há um tempo apoiando a extrema-direita pelo mundo. E ele usou as publicações daquele jornalista para fazer isso no Brasil. Aquelas publicações mencionam um monte de decisões judiciais brasileiras diferentes, algumas do inquérito das fake news, algumas da Justiça eleitoral e outras ações. Ele (Michael Shellenberger) pegou comentários da equipe jurídica do Twitter e tirou do contexto.

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Conversei com funcionários que foram expostos ali (nos e-mails divulgados) e eles explicaram que tiraram alguns e-mails da ordem cronológica, criaram uma narrativa de censura no Brasil e como se o Twitter fosse o arauto da liberdade de expressão. Falaram de abusos do Alexandre de Moraes diante dessa narrativa.

E a partir daí fizeram esse chamado político: vamos contra a censura e ir contra as decisões judiciais, para liberar todo mundo. Grande parte desses perfis suspensos chamavam para o golpe (de 8 de janeiro) e agora dizem que não sabem por que estão suspensos, mas é claro que sabem. Eventualmente, pode haver alguma decisão em sigilo, mas a maioria não está.

Eles misturaram ações eleitorais com ações não eleitorais, misturaram o inquérito das fake news e os trechos de e-mails que eles quiseram. Aí a narrativa fica muito boa.

O Musk diz que vai reativar todos os perfis, então pode ser que todos aqueles perfis bolsonaristas (derrubados pela Justiça) voltem.

BBC News Brasil - E qual deve ser a consequência dessas medidas anunciadas por Musk?

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Estela Aranha - É difícil mensurar porque eles estão provocando o STF para suspender o Twitter. E o próprio Musk disse que talvez precise suspender as operações no Brasil.

Se o Twitter for suspenso, isso vai corroborar a própria narrativa deles de que criticaram o STF e foram suspensos pelo Moraes. Mas não é bem assim, porque nesse caso eles estariam descumprindo decisões do Judiciário. Fazem isso para provocar uma reação mais forte, para escalar o debate e a tensão no bolsonarismo. É algo bem orquestrado.

Estela Aranha defende que regulação das redes sociais seja feita com urgência
Foto: Tom Costa / MJSP / BBC News Brasil

É uma possibilidade legal (retirar o Twitter do ar) em último caso. Isso que o Musk fez pode respaldar esse tipo de ação, que é a sanção mais extrema nesse caso. É um debate que o Judiciário deve fazer quando necessário, caso eles descumpram as obrigações legais.

BBC News Brasil - Musk reverbera outros críticos de Moraes, que consideram que o ministro concentrou muito poder durante as eleições e que toma decisões discricionárias. Qual a sua avaliação?

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Estela Aranha - Estamos com a extrema-direita atacando a democracia do país. O objetivo não é técnico, isso não é uma discussão sobre as decisões. É um ataque político de extrema-direita contra o STF e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Sempre podemos fazer um debate público (sobre as decisões) dentro da Justiça. Mas o que está acontecendo não é um debate. É uma empresa transnacional, sem nenhuma governança, cujo dono é conhecido por fazer militância de extrema-direita, afetando o sistema democrático de um país a partir de uma pauta política que há tempos ele vem trazendo e radicalizando.

Não estamos falando que as coisas não podem ser debatidas. É que neste caso está ocorrendo um ataque político de forças de extrema-direita externas ao sistema político brasileiro. É algo orquestrado.

Discussões políticas ou técnicas e jurídicas sobre decisões sempre podem ocorrer. Mas essa ação não é uma discussão assim, é um ataque de forças políticas estrangeiras de extrema-direita a instituições democráticas do Brasil.

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BBC News Brasil- Em 2023, enquanto você estava no Ministério, ajudou a desenhar política que cobrou mais ações das redes sociais na moderação de informações que pudessem impulsionar a violência nas escolas, em uma época em que o Brasil teve diferentes ataques em períodos próximos. Como avalia essa experiência? Como foi a relação com o Twitter nesse período?

Estela Aranha - É claro que a moderação é um problema grave nas redes sociais. A gente tem muito conteúdo ilegal ou danoso nas redes. E todos os serviços que você oferece, seja no digital ou presencial, tem que oferecer um local seguro, não pode permitir violação de lei e isso continuar impune.

Obviamente tem que cuidar dos riscos que você gera, que a gente chama de riscos sistêmicos, que essas redes sociais colocam. As redes, de modo geral, ainda estão aquém do que é necessário em relação a um serviço de segurança e com menos danos.

E o Twitter especialmente, depois que foi adquirido pelo Musk (em outubro de 2022), tem piorado nesse aspecto. A situação dele não se compara a outras redes que estão tentando entregar um serviço. O Twitter cortou cada vez mais a moderação de conteúdo. Eles não queriam tirar os conteúdos explícitos de estímulo a ataques em massa, há conteúdo de exploração sexual infantil a poucos cliques, de terrorismo…

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E eles oferecem esses perfis aos usuários. Dias atrás me mandaram um perfil de um terrorista, para denunciar. Eu vi o perfil e depois a própria rede começou a sugerir vários conteúdos semelhantes. Além de sugerir temas como automutilação, anorexia ou exploração. Tudo isso é recomendado sem nenhuma moderação.

Na época dos ataques nas escolas, quando fizemos o projeto Escola Segura, depois de muita pressão o Twitter começou a excluir especificamente esses conteúdos (de incentivo a ataques), mas precisou de muito esforço para que colaborassem.

Também tivemos dificuldades com o (aplicativo de mensagens) Telegram, mas do ponto de vista de rede social é no Twitter que se comete crime à vontade.

Elon Musk comprou o X em outubro de 2022 e coleciona polêmicas, uma delas foi a mudança no nome da rede social
Foto: GETTY IMAGES / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O perfil oficial do X disse, após as declarações de Musk, que não acredita que as decisões de Moraes sobre os perfis derrubados "estejam de acordo com o Marco Civil da Internet ou com a Constituição Federal do Brasil". Como você avalia esse tipo de afirmação?

Estela Aranha - É aquele debate de interpretação do Marco Civil da Internet de modo a não responsabilizar uma plataforma sobre conteúdos de terceiros. Como se isso fosse algo individual e não uma obrigação geral da plataforma de manter segurança do serviço e cuidado sobre questões que podem causar danos gerais.

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Tudo isso (a responsabilidade das plataformas) é previsto na legislação quando diz que elas não podem causar riscos coletivos agravados pelo serviço que prestam, que precisam manter a integridade do seu ambiente, coisas que são essenciais nas redes sociais.

O Marco Civil tem que ser seguido pelas normas gerais, de direitos fundamentais da nossa Constituição, que prevê a responsabilização de quem gera danos ou riscos. A rede social pode não ser responsável por aquela publicação específica, mas sobre o seu serviço de modo geral ela é absolutamente responsável.

Além disso, o Marco Civil diz que as redes podem fazer a exclusão de conteúdos conforme a legislação brasileira e direitos humanos internacionais. E a legislação brasileira pode avaliar a pertinência de uma publicação e mandar excluir, que é o que parece esse caso.

A gente está falando de decisões judiciais que obviamente precisam ser respeitadas. A gente está falando também sobre integridade das eleições em alguns desses casos, como nos inquéritos de fake news ou milícias digitais.

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E claro, a regulamentação das redes sociais é muito importante para que tudo isso fique claríssimo, sem interpretações equivocadas.

E essa resposta do X em que dizem que a rede vai responder judicialmente às solicitações contradiz o Elon, que tem afirmado que não vai cumprir as decisões judiciais.

A empresa tem todo o direito de contestar judicialmente. Agora resta saber se o X vai seguir a pessoa jurídica ou as bravatas da pessoa física.

BBC News Brasil - O que você enxerga como o melhor caminho para a regulamentação das redes sociais no país? E o que o Brasil tem feito nesse sentido?

Estela Aranha - A regulação das redes sociais é necessária e urgente. A gente precisa ter clareza exatamente de como devem ser as diretrizes de transparência, devido processo legal, moderação de conteúdo, supervisão do cumprimento dessas empresas em relação à legislação nacional.

Tem muita coisa pra fazer em relação a redes sociais e muito debate a fazer, o que tá mais encaminhado atualmente é o PL (projeto de lei) 2630, conhecido como PL das fake news [parado na Câmara dos Deputados, o projeto busca reforçar a regulamentação e fiscalização sobre plataformas digitais, como redes sociais, aplicativos de trocas de mensagens e ferramentas de busca, mas especialistas como Estela defendem que o projeto precisa de mais discussões]. Mas também serão necessárias outras medidas.

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O Brasil precisa caminhar com urgência em relação a isso e é importante dar urgência ao que já está encaminhado.

A gente não pode fechar os olhos em relação a esse tema, porque é importante adequar toda a legislação. A gente não pode fechar os olhos em relação a isso porque os impactos são enormes na sociedade. Você pode cobrar com as leis existentes, mas uma legislação específica ajudaria muito a esclarecer as obrigações das redes sociais, o que elas precisam cumprir e quais as penalidades se elas não cumprirem.

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