"The Glory" não é sobre vingança, é sobre a reação do oprimido

Bullying é mais comum do que deveria, mais presente na sociedade do que conseguimos perceber e não se restringe ao espaço escolar

24 fev 2024 - 05h00
(atualizado em 8/3/2024 às 16h56)
"The Glory" traz uma professora que planeja revidar bullying quase duas décadas depois de sofrer a violência
"The Glory" traz uma professora que planeja revidar bullying quase duas décadas depois de sofrer a violência
Foto: Reprodução/Netflix

Bullying é coisa séria. Seríssima. Conheço pessoas que foram destruídas, quase irreversivelmente, por esse tipo da violência, que é tão letal quanto silenciosa e não pode mais ser tratada com certa condescendência, pela sua característica mais comum, o espaço escolar, o que remete à infância e adolescência. Mas o pior é que bullying é mais comum do que deveria, mais presente na sociedade do que conseguimos perceber e não se restringe ao espaço escolar, embora seja esse o ambiente mais comum. 

E é sobre isso que trata o excelente drama “The Glory” (ou "A Lição"), disponível na Netflix. A série mais assistida de 2023 conta a saga de uma vítima de bullying na adolescência, a professora Moon Dong Eun, vivida por uma Song Hye-Kyo, de "Descendentes do Sol" e "Encounter", no auge do seu talento inconfundível, que planeja minuciosamente uma vingança contra os seus algozes dezoito anos depois de sofrer a violência. 

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É incrível como o roteiro nos dirigiu com muita habilidade pelos inúmeros sofrimentos que a turma popular e riquinha do colégio imprimia à Dong Eun e a outras pessoas também, como torturas físicas e psicológicas, nos levando a entender que o 'modus operandi' do bullying é sempre coletivo e que os que o cometem só sobrevivem em um ciclo de subjugar e agredir porque andam em bando e, muitas vezes, têm algum tipo de poder consolidado, seja social ou econômico, que os respaldam. 

Uma das questões mais urgentes, e que poderia ser muito eficiente na erradicação desses grupos, seria identificar de onde vem esse poder que os respaldam, e que inclusive facilita na imobilização das vítimas e até das possíveis testemunhas das aberrações que eles praticam.

O drama em questão se passa na Coreia do Sul, onde os altos índices de bullying, que muitas vezes estão por trás até de casos de evasão escolar e suicídio, têm levado essa questão a ser discutida publicamente. Daí a importância de "The Glory" e um dos motivos de ter sido a série mais vista no ano passado por lá, assim como também foi uma das mais vistas no mundo todo. 

Aqui no Brasil, o bullying também está muito presente, sendo mais frequente no ambiente escolar e acadêmico, mas também em outros espaços, como na internet, onde observamos uma outra modalidade: o cyberbullying. 

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Segundo o 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho de 2023, 38% das escolas brasileiras relatam problemas com bullying. Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo lideram o ranking brasileiro dessa pesquisa, que foi feita em 2021, através de questionário realizado pelo Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). 

De acordo com a ABRACE Programas Preventivos, que tem o programa "Escola sem Bullying", são recebidos diariamente relatos de pais e familiares pedindo ajuda para seus filhos que têm sofrido com essa prática no ambiente escolar. É bom que você saiba que, no Brasil, existe uma lei para isso: a Lei Federal 13.185/2015 de Combate à intimidação Sistemática - Bullying. 

Dados levantados pelo Ministério dos Direitos Humanos apontam que as principais violências no ambiente educacional são de ordem emocional, como constrangimentos, torturas psíquicas, ameaças e injúrias. E devemos considerar todas elas como modalidades do bullying. 

Esses números são assustadores, mas é possível que ainda assim, pela dinâmica característica do bullying, tão bem exposta na série coreana, eles podem ser maiores e que há subnotificação, uma vez que nem toda vítima consegue denunciar, devido aos abalos psíquicos a que podem ter sido expostas. 

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O bullying afeta profundamente a vítima e também se vale de práticas de silenciamento e chantagens de todo tipo. Podemos classificar o bullying como uma violência hedionda e jamais acreditar que se limita a xingamentos e constrangimentos verbalizados. 

Em uma das tantas cenas perturbadoras e angustiantes deste drama coreano, a protagonista é queimada com um modelador de cabelos enquanto todos ao redor dão risadas. Em outra cena, ela mostra ao rapaz, a quem conhece já na vida adulta, o corpo todo cheio de cicatrizes como resultado de anos de torturas variadas. Diante do choque, o médico Joo Yeo Jeong, vivido pelo ator Lee Do Hyun ("Jogo da Morte"), passa a ajudá-la na punição de seus agressores.

A professora ainda conta com a ajuda de uma vítima de violência doméstica, o que sinaliza a necessidade de uma aliança baseada na empatia entre pessoas que sofrem qualquer tipo de violência. 

A personagem tem um tom sombrio e introvertido, que retém as emoções e evita qualquer tipo de envolvimento ou aproximação emocional, repelindo as pessoas e sendo solitária. Isso nos leva a entender que esse é um dos traços de personalidade desenvolvidos por quem sofre violências.  

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Mas a série também traz uma outra abordagem, a da reação da vítima. 

E aí fica um pouco incômodo, sobretudo porque trata na perspectiva da vingança e essa perspectiva situa a reação sem afirmar de fato que é uma reação. Tanto que "The Glory" é tratada como uma história de vingança e não como um revide justo diante de uma agressão sofrida. Seria mais útil, do ponto de vista social ao qual a série se pretende, destacar que toda ação tem uma reação. 

A professora Moon Dong Eun, assim como toda e qualquer vítima de agressão, tem sua vida completamente desestruturada, tendo que desistir do sonho de se tornar arquiteta, pela ação maldosa de seus algozes. Embora a narrativa da série seja bastante taxativa quanto a isso, intuitivamente, pessoas que não conseguem refletir pelo viés da empatia, ainda que não condenem a “vingança” também não condenam a ação que motivou a reação.

É importante também entender duas coisas:

- primeiro que, em uma sociedade estruturada por opressões de raça, classe e gênero, o bullying vai ter vítimas específicas que podem virar alvo facilmente pelo grupo social ao qual pertencem. Temos um exemplo no entretenimento de massa norte-americano que fez muito sucesso aqui no Brasil, que é “Todo Mundo Odeia o Chris”. O conflito entre Caruso e Chris deveria ser abordado como bullying. 

- segundo que não dá mais para pensar na criança e no adolescente como neutros à Pedagogia da Violência (conceito cunhado pela antropóloga Rita Segato). Uma vez que vivemos em uma sociedade cuja violência é uma linguagem que comunica status social, poder aquisitivo entre outros elementos hierarquizantes, precisamos pensar em como isso é absorvido pelos que estão em formação da sua subjetividade e ainda não têm um amadurecimento psíquico básico finalizado.

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A sociedade como um todo precisa pensar em como estamos violentos e como isso tem atravessado todas as camadas da sociedade. 

E, por último, ainda que a protagonista do kdrama, a professora Moon Dong Eun, tenha punido seus algozes um a um e seja muito aliviante assistir essa trama, trata-se de uma ficção.

Mas, se fosse real, além dos agressores possivelmente estarem livres e cometendo outras violências coordenadas, as marcas profundas deixadas na vítima não são possíveis de serem curadas ou recuperadas através de sua reação, ainda que seja legítima. As vítimas de bullying precisam de atenção e acolhimento, além de um acompanhamento especializado para conseguir lidar com as dores físicas e morais que sofreram.

Fonte: Redação Nós
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