Planejamento sem paixões e intransigências

Transição para uma matriz energética 100% limpa não pode prescindir de segurança e de tarifas adequadas

5 set 2020 - 04h11

A Califórnia é referência em geração limpa e renovável de eletricidade. Em razão disso, os recentes apagões ocorridos no Estado vêm ganhando repercussão no noticiário internacional. O que está acontecendo na Califórnia acende uma discussão que deveria ser feita, sem paixões e intransigências, sobre um equilíbrio entre a geração térmica e as renováveis.

A Califórnia vem enfrentando, em pleno período de eleições presidenciais, problemas graves com a falta de energia e os aumentos no preço da eletricidade, que já é um dos mais elevados do mundo. No episódio recente, o Estado comunicou aos californianos o planejamento de apagões escalonados, com a finalidade de administrar a oferta e a demanda. O desequilíbrio entre a geração e o consumo de eletricidade surgiu da combinação de uso pesado de aparelhos de ar-condicionado, da indisponibilidade não planejada de algumas usinas de energia, da limitação da importação de energia de Estados vizinhos e da insuficiente geração solar e eólica.

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Uma forte onda de calor que assolou o Estado acabou por questionar o planejamento do setor elétrico na opção pela alta dependência das fontes renováveis.

Os defensores das renováveis no Estado enfatizam que a energia solar e a eólica se complementam: quando o sol deixa de brilhar, o vento sopra, e vice-versa. E, ainda que um recurso renovável esteja menos disponível, as linhas de transmissão podem transmitir eletricidade de outras regiões. No entanto, o forte calor empurrou a demanda californiana de energia para níveis quase recordes, a geração solar ficou indisponível à noite, os ventos desaceleraram e a energia importada de outros Estados não foi suficiente. Ficou nítida a necessidade de acionamento da geração térmica para compensar a falta da geração renovável. O evento contou, ainda, com o desligamento inesperado de uma série de usinas de gás natural, cerca de 9GW, além da já reduzida capacidade nuclear. Olhando pelo retrovisor, o resultado parecia previsível.

O Brasil também conta com uma considerável expansão das renováveis em sua matriz elétrica. Esse movimento é notável no subsistema Nordeste, que conta basicamente com quatro fontes de oferta de energia: a eólica, a hidrelétrica, a termoelétrica e a importação dos outros subsistemas, em especial do Norte. A entrada em operação das hidrelétricas da Região Norte auxilia a oferta no Nordeste, porém são fluxos sazonais, pois são usinas a fio d'água, que geram energia apenas no período úmido.

As eólicas ganharam espaço no Nordeste e foram inseridas para dar suporte num momento de forte crise hídrica enfrentada pela região. A geração eólica nordestina representa cerca de 85% da geração nacional pela fonte. Com o aumento da geração eólica e, futuramente, da energia solar, precisamos estar atentos à intermitência dessas fontes. Diante disso, sugerimos um planejamento que considere o suporte de térmicas a gás natural para assegurar o fornecimento energético. É importante a presença de termoelétricas flexíveis e inflexíveis funcionando como uma espécie de bateria virtual garantindo a expansão das renováveis com resiliência e segurança de abastecimento.

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O gás natural - a mais limpa das fontes fósseis - cumpre o papel de backup com custo baixo e maior eficiência. Em razão disso, uma lista significativa de países tem adotado uma visão complementar entre a expansão termoelétrica a gás natural (flexível e inflexível) e a renovável, com a lógica do bom senso que chamamos de E, e não de OU.

Segundo o governador da Califórnia, Gavin Newsom: "Vamos ser o mais claro possível: nós falhamos em prever e planejar essas faltas - e isso é simplesmente inaceitável". Dois ensinamentos. O primeiro é a dúvida sobre quanto tempo ainda vamos viver a transição energética. O segundo é que uma matriz elétrica 100% limpa ainda é um desafio caro, arriscado e com incertezas sobre os caminhos que a tecnologia vai seguir. Portanto, na transição, não devemos e não podemos abrir mão da segurança energética e de tarifas adequadas ao nível de renda do consumidor. Este é o papel do gás natural e por isso é considerado a energia da transição.

*DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE INFRAESTRUTURA (CBIE)

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