Mari Sena: "Brasileiro tem arte de ser racista na sutileza"

A atriz que interpretou Gilda na série "Todas as Mulheres do Mundo", disponível no Globoplay, falou ao Terra sobre o racismo no dia a dia

2 jul 2020 - 10h14
(atualizado às 11h29)

Quase fonoaudióloga que virou atriz, Mariana Sena sempre teve a família como referência. Com discursos dos pais sobre a negritude, foi preparada, desde criança, para entender questões relacionadas à cor de sua pele perante a uma sociedade racista e se entender como uma futura mulher negra. Dentro de casa, descobriu o que era empoderamento, característica que leva consigo como indivíduo e que pôde colocar na personagem Gilda, em Todas as Mulheres do Mundo, do Globoplay.

"Eu tive muito o privilégio de ser criada por pais que me deram consciêcia racial. Estudei em colégio particular, sempre rodeada de pessoas brancas. O racismo já estava na minha infância. Então, eu não consigo datar assim o período em que eu criei essa consciência. Mas óbvio que eu não me livrei de viver situações de racismo, nem me ausentei delas. O brasileiro tem a arte de ser racista com a sutileza", diz a atriz, em entrevista ao Terra. 

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Aos 24 anos, Mariana acaba de dar vida à sua segunda protagonista no streaming da Globo. Na trama inspirada nas obras de Domingos Oliveira, ela vive uma cantora que se envolve com Paulo (Emílio Dantas). Antes, para a Netflix, havia vivido Carla, na série de terror infanto-juvenil Spectros, ambientada no bairro da Liberdade, em São Paulo. Após os dois trabalhos, emendou as gravações da série Segunda Chamada, da Globo. 

Mariana Sena como Gilda na série "Todas as Mulheres do Mundo", do Globoplay
Mariana Sena como Gilda na série "Todas as Mulheres do Mundo", do Globoplay
Foto: Reprodução

Terra: Mariana, como foi a repercussão da personagem Gilda, seu papel mais recente?

Foi ótimo. Foi uma delícia porque eu não era uma pessoa assídua no Instagram e as pessoas vieram me procurar para dizer que gostaram. É muito interessante porque é uma personagem mais adulta, ao mesmo tempo em que ela é jovem, e foram justamente os adultos mais velhos que se identificaram mais com a personagem. Foi mais pelas redes sociais que eu fui entendendo. Como estreou no isolamento, eu tive esse termômetro online. Óbvio que a gente que faz tem um outro olhar. 

E qual é esse olhar que você tem?

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Eu tenho muita dificuldade de assistir o que eu faço e gostar. Eu fico pensando assim.. Por ser uma pessoa que tem um posicionamento mais militante, analiso de forma crítica. Então, eu tenho uma dificuldade de aceitar alguns caminhos da personagem de forma mais geral. Eu tenho um olhar mais problematizador. Ela é uma mulher jovem, é cantora, e eu até me identifico com ela nesses aspectos. Mas é que eu vejo alguns estereótipos sobre serem todas as mulheres do mundo. Não são todas. 

O papel é inspirado em Leila Diniz. E já havia sido interpretado por Sophie Charlotte. Houve comparações?

A Gilda é uma figura que tem um posicionamento muito moderno. Ela se encaminha para essa lógica mais empoderada de hoje em dia. Ela tem esse desprendimento e essa determinação muito jovem. Eu sinto que as pessoas se interessavam em me perguntar como foi ter interpretado alguém que já foi vivido por Sophie Charlotte, mas mais das pessoas da área artística. Então, eu sinto que as pessoas que tinham assistido ao que a Sophie fez ficaram presas ao lugar da comparação. Isso é muito louco porque são pessoas distintas interpretando a mesma personagem. Houve bastante o associar. Houve quem achasse legal a minha Gilda, mas outras tinham um apreço pela Gilda Clássica, feita pela Sophie. E que não é uma crítica, cada um tem seu gosto. 

Mariana, partindo para a sua vida pessoal: em que momento você percebeu o racismo como uma injusta realidade vivida por pessoas negras?

Datar eu não consigo, sempre foi algo muito presente. É óbvio que eu soube disso desde pequena com meus pais, que sempre me conscientizaram. Mas eu vivi situações das quais eu não soube agir. Eu fui uma criança que estudou em colégio particular. E quando você é uma criança, negra, rodeada de outras crianças que não são negras, elas têm como referência de negras a babá, o porteiro. E a forma como os pais lidam com essas pessoas ao seu redor, influenciam o imaginário dessas crianças. Não é que a criança é racista, mas ela reproduz aquilo. 

Atriz e militante Mariana Sena
Foto: Reprodução

Você se lembra de alguma situação de racismo que tenha sido marcante na fase escolar?

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Na época de pré-escola, a minha mãe fazia trancinhas no meu cabelo. As crianças sempre iam de cabelo preso, de rabo de cavalo, mas no meu cabelo não dava para fazer e eu ia de trancinhas. Um dia, no refeitório, um menino jogou uma jarra de leite na minha cabeça. E ele ficou zoando da situação e me colocou um apelido, que me acompanhou por muito tempo. Crianças de escola particular passam sempre para uma escola maior em grupo. Então, o apelido foi me acompanhando até o meu ensino médio. Eu já tinha alisado o cabelo, mas aquilo ainda mexia comigo. Era completamente humilhante. Todo mundo via, mas ninguém da escola nunca fez nada. Eu acho que os profissionais das instituições não estiveram aptos a me amparar. 

Mais à frente, na adolescência, você sofreu por não encontrar base no tom da sua pele, por exemplo?

Para ser bem sincera, o único momento em que eu tive dificuldade com maquiagem foi depois de ser adulta. É óbvio que eu senti, sinto até hoje. Vejo que algumas marcas se movimentam para criar e dar atenção, mas é para se pensar que a indústria nunca se atentou que existe todo um mercado e uma quantidade de pessoas pretas, de tons completamente distintos, que se interessam. Ainda que hoje em dia existam um número maior de bases e de produtos, é muito raro você encontrar um tom exato de primeira. Eu tenho que ir fazer uma alquimia da make para acertar o tom com pingos de um produto e de outro. 

Essa alquimia com relação à maquiagem, já te colocou em uma situação embaraçosa?

É muito comum você fazer um trabalho publicitário ou uma personagem, mas não encontrar ali no trabalho uma pessoa que saiba fazer essa alquimia. Eu vejo que as maquiadoras estão se atentando mais para isso. Quando eu fazia publicidade, eu estava pronta, fazia a foto e depois o fotógrafo pedia para a maquiadora corrigir a maquiagem porque meu rosto estava esbranquiçado ou com o tom diferente do resto do meu corpo.

Além da casa dos seus pais, existe algum lugar de conforto social e distante do racismo de cotidiano?

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Quando eu saí da casa da minha mãe, nitidamente houve uma aproximação de pessoas com as quais eu me identifiquei. Eu tenho pessoas pretas no meu convívio e a gente compartilha as experiências que nos são comuns. 

Quem são as pessoas que te inspiram na militância e luta pela igualdade racial?

Muitas pessoas são referência em minha vida. Eu percebi que eu tinha dificuldade de elencar pessoas nacionais próximas. Eu, pensando em formação ideológica, óbvio que Angela Davis. Djamila Ribeiro é alguém que eu li e leio bastante e é uma referência também. Malcolm X é um exemplo de liderança para mim. Mas também tenho como referência Silvio Almeida, Ana Flavia Cavalcanti, Zezé Motta. Viola Davis, meu sonho de atriz. Eu acho ela, assim, uma atriz impecável. E nesse período de quarentena eu assisti a muitos filmes e eu vi a Viola fazendo umas participações, 'pequenas', mas eu só lembro dela no filme. Ela é muito militante. Ela fala muito sobre oportunidade, sobre abrir espaços. Ela foi aparecendo aos poucos, forjando esses espaços. 

Ser negra e ser questionada sobre racismo quase sempre, como agora, é algo que te incomoda?

Eu acho que cansa muito porque falta um lugar da branquitude de se questionar, de se informar. Nossa, agora, tem Google, dá para saber. Por que esse é um assunto que uma pessoa preta tem que te orientar? Eu percebi agora durante esse movimento Black Lives Matter muitas pessoas me procurando. É óbvio que chega um momento que enche o saco. É uma lógica da manutenção da prestação de serviço. Em um momento em que a branquitude precisa se rever, você, que é preto, precisa mastigar a informação e no final quem é branco escolhe ou não fazer o que você disse. Da mesma forma em que rola essa manutenção da lógica da servidão, da prestação de serviço, eu entendo que não dá para a gente também cansar de falar e não fazer alguma coisa: discutindo e elaborando o racismo como estrutura. Muitas pessoas pretas não tem uma consciência de racismo como estrutura como outras têm. Como pessoas pretas que se dizem militante, que acreditam numa causa, na estruturação de tudo, a gente precisa se comunicar como agente de problematizações. Não dá para simplesmente dizer que não dá para militar hoje. O que menos a gente precisa é abandonar as nossas questões. 

Como artista e militante, o que recomendaria para ajudar na desconstrução do racismo?

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Eu sou muito consumidora de filmes. Recentemente, eu assisti, na Netflix, Olhos que Condenam. É uma ótima série. Tem American Son, um filme que não é o tipo que eu gosto muito, mas dá para problematizar o policial racista. Luta por Justiça eu também recomendo. Atlanta é uma ótima série, racho o bico. Tem uma chave cômica que pega para pessoas pretas. Racha o bico para quem é preto, mas parece sério para quem é branco. Livros como Pele Negra, Máscaras Brancas e Mulher, Raça e Classe, que eu considero uma bíblia.

Dom Casmurro é uma obra que quando eu aprendi na escola me foi apresentado pela chave Capitu traiu ou não traiu. Todas as vezes em que eu falo de livro, digo que a gente não parou para entender Machado de Assis, um dos maiores escritores que existiu no País. Dom Casmurro é um texto que ilustra muito isso porque fala de um homem hétero, de classe média rica, que está em uma crise financeira, mas quer manter um relacionamento abusivo e não quer perder o seu lugar de privilégio. Se você lê com essa chave, dá para perceber que essa é o retratado do Brasil. Se você vê como ele se relaciona com os empregados, com os ambulantes, vê o retrato do Brasil inteiro e da releitura do Brasil.

Fonte: Redação Terra
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