O que você seria capaz de fazer para garantir os remédios que evitariam a morte precoce de sua mãe?
Em ‘Três Graças’, Gerluce (Sophie Charlotte) renuncia à honestidade. Após receber um ‘sinal’ de Santa Rita, ela se sente autorizada a roubar a estátua de 1,5 milhão de dólares da mansão de Arminda (Grazi Massafera).
O plano é vender a obra de arte e usar o dinheiro para comprar remédios a todos os doentes da comunidade da Chacrinha, enganados com os medicamentos falsos da Fundação Ferette.
Entre eles, Lígia (Dira Paes), mãe da própria heroína às avessas e portadora de uma doença pulmonar grave.
Honestidade flexível?
“Para você, assalto é uma coisa que presta?”, questiona Joaquim (Marcos Palmeira), pai ausente de Gerluce, a quem ela pede ajuda para pegar a estátua e guardá-la em seu ferro-velho.
Inicialmente, ele recusa participar do plano, porém, ao saber do objetivo nobre (evitar mais mortes entre os vizinhos), aceita ser cúmplice.
Comportamento semelhante ao da farmacêutica Viviane (Gabriela Lohan), que vai da hesitação ao engajamento após ser convencida pela amiga Gerluce.
A atitude dos personagens promove a ideia de que a moralidade se dobra diante da urgência. O senso de ‘certo e errado’ deixa de ser absoluto quando surge uma ameaça ao bem-estar coletivo.
Assim, aceita-se uma transgressão como parte de um ‘sacrifício ético’. A narrativa sugere que a honestidade dos personagens não desaparece — apenas muda de forma, adaptando-se a uma circunstância urgente.
Gerluce x Raquel
O roteiro de ‘Três Graças’ quer convencer o telespectador de que a protagonista Gerluce continua íntegra mesmo se tornando uma ladra.
Vários elementos forçam a compaixão do público: o carisma da moça, o amor zeloso pela mãe, a solidariedade com os doentes da comunidade, o medo de ser punida pela santa de devoção. Ainda que rocambolesca, a trama consegue sustentar o questionamento ético.
Aspecto interessante que se perdeu no discurso de Raquel (Taís Araújo) ao longo de ‘Vale Tudo’. Nos primeiros capítulos, o ambicioso remake lançou a discussão sobre o valor de ser honesto em um país de malandros, porém, o público ficou ao lado da trapaceira e alpinista social Maria de Fátima (Bella Campos).
Isolada e vista como chata, a virtuosa Raquel virou coadjuvante e a abordagem dramatúrgica do dilema desapareceu.
A cambalhota psíquica de Gerluce
Numa análise psicanalítica, a mocinha de ‘Três Graças’ não sente culpa pelo roubo da estátua por diferentes razões.
A começar de que não será pessoalmente beneficiada, ou seja, o objetivo não é ficar milionária. Os favorecidos serão os enfermos pobres enganados pelos vilões.
Dessa maneira, desloca a responsabilidade moral do crime para os insensíveis e corruptos Arminda e Salvador Ferette (Murilo Benício).
Como ela mesmo disse, trata-se de uma “expropriação”. Sob sua ótica, um roubo compensatório, uma correção de desigualdade, a restauração da justiça.
Ao agir com altruísmo e afetividade, Gerluce se sente no direito de driblar a lei e os próprios princípios.
Tudo indica que os telespectadores ficarão ao lado dela, reforçando o velho conceito do ‘jeitinho brasileiro’, esse modo peculiar de contornar a regra sem carregar o peso do remorso.
Nessa perspectiva, Gerluce mereceria ficar impune e ter um final feliz, assim como Maria de Fátima. Mais Brasil, impossível.