'Nossos números são de guerra, o que acontece com a nossa população é de guerra', diz Criolo

Em entrevista ao 'Estadão, rapper fala sobre sua busca por maior conexão com o público, seu projeto para ajudar pessoas que não têm casa, impactos da pandemia no Brasil e racismo

3 jul 2020 - 11h29

Desde as rinhas de rap do início de sua carreira, 1989, Criolo denuncia problemas sociais enfrentados pela população diariamente. Em pleno 2020, a pandemia do novo coronavírus evidencia essas agruras e ainda as torna piores. "Para quem já levava a vida péssima, ela está muito horrível", resume o artista em entrevista ao Estadão.

Nesse cenário, o músico busca uma conexão mais direta com sua "família", maneira pela qual ele chama seu público. Assim após um convite da plataforma de streaming Twitch, surgiu a Criolo TV. "Com tudo isso que a gente está vivendo, é uma forcinha a mais para a gente encarar esse lance todo. Um conjunto de coisas que faz com que a gente se movimente um pouquinho mais para jogar coisa boa no mundo", contou.

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O canal exibe os quadros 'Até Me Emocionei', que traz leitura de poesias social e politicamente engajadas; 'Ainda Há Tempo', um bate-papo com convidados; e o 'Existe Amor', sobre o projeto de mesmo nome em parceria com Milton Nascimento para ajudar pessoas que não tem casa ou estão em situação de vulnerabilidade.

A iniciativa solidária surgiu quando a pandemia do novo coronavírus começou a afetar o Brasil. "A caridade é ferramenta de sentimento para uma situação emergencial, sobretudo em situações de guerra, as quais estamos vivendo. Com a pandemia isso extrapola, porque a gente já vive esse ambiente por causa desse descaso social absurdo, nossos números são de guerra e o que acontece com a nossa população é de guerra, com a pandemia isso piora."

O coronavírus colocou um lente de aumento em todas as desigualdades que vivemos, uma delas é a educacional. Você tem uma relação com a educação, sua mãe foi professora, você foi arte educador. Qual é o seu olhar para a educação a distância que está sendo praticada no Brasil por causa da pandemia?

Isso revela também o quanto os profissionais de educação são resilientes e resistentes, o quanto eles tentam de algum jeito com seu modo criativo, afeto, amor e paixão à educação fazer com que a coisa aconteça.

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Tem escola que não tem teto, tem escola que não tem carteira, tem escola que pegou fogo e não teve como reformar. Tem escola que você olha e fala não é possível que isso está acontecendo. Você vê o descaso com a educação, com os espaços dedicados com a educação, o descaso com todos os profissionais envolvidos com educação, como o que temos de mais importante que é a nossa juventude. São cenas muito fortes. E ao mesmo tempo você vê a resiliência, a paixão, o amor e a entrega das pessoas para que esses caminhos sejam trilhados, para que o jovem não perca o desejo de trilhar esse caminho da educação que é um caminho eterno.

Dói muito, dói demais. As pessoas não têm moradia, não têm o que comer, então a gente tem que se desenvolver muito para levar dignidade para todos. Então, fica muito distante você falar de internet. O projeto Existe Amor é para 40 milhões de brasileiros que vivem em vulnerabilidade social, que não têm onde morar. Não tem onde morar, gente! A pessoa não tem o que comer em um País que exporta comida para o mundo. Uma pequena porcentagem das pessoas alcança o ensino a distância. Estou tentando falar do modo mais sereno possível de algo esdrúxulo.

Outra questão esdrúxula é ainda existir racismo, um tema que você escancara desde o início da sua carreira. Você esperava que em 2020 o Brasil e o mundo ainda seria tão racista e que ainda seria tão importante falar sobre isso?

Dói muito mais. Dói demais. Não existe fortalecimento das pessoas que lutam pelas questões humanitárias, não existe o fortalecimento das pessoas que lutam pela igualdade racial. Existe todo um movimento para fragmentar esses coletivos. Dependendo de como as coisas estão sendo conduzidas, dependendo das pessoas que estão no poder que assinam os documentos que ditam o que é e o que não é para nação, trabalhos de 50 anos são jogados fora em meses, lutas de 100 anos, 200 anos vão por água abaixo em dois três meses. Isso é muito terrível.

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Todos os problemas que estamos vivendo enquanto sociedade, muitos que não são novos, mas foram intensificados com a pandemia, serão um combustível para o seu trabalho como músico?

Dói muito isso aí tudo. A arte é o coração das pessoas, a entrega de cada brasileiro para construir algo novo, positivo, mudança, igualdade, afetividade. A música é assim, mas o rap em particular grita hás 30 anos sobre essas desigualdades e não quer mais cantar sobre isso, mas enquanto isso acontecer a arte será sempre uma ferramenta de resistência, de apresentar para a sociedade onde ela deve melhorar.

Mas também apresenta caminhos, nós temos possibilidade de melhora por mais que demore, por mais que a gente sangre juntos, por mais que se demore para entender o quão grande é essa transformação e o quanto é maior ainda o que pode reverberar de positivo para todo mundo.

A arte vem como um fortalecimento do que a alma grita. Queremos cantar dias melhores, queremos cantar toda a beleza do mundo, todo o amor do mundo e cantaremos todo o amor do mundo e também cantaremos para fortificar as pessoas que lutam contra as forças que não querem todo o amor do mundo.

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As lives musicais vieram para ficar ou devem diminuir após a pandemia?

Tem muita gente experimentando esse novo segmento e vai continuar, porque gostou, entendeu que é um novo jeito de comunicar de fazer, de construir. Vai muito de cada equipe, como vai imaginar o saldo.

Você já tem uma perspectiva de como é para você isso?

Eu não sei ainda, é tudo muito novo. Não sei, estou conversando com você e pensando. Eu não tenho resposta para isso, estou aqui dividindo com você.

Muitas pessoas têm a necessidade de dar o seu melhor de algum jeito, de contribuir de algum jeito. A vida no Brasil já é muito difícil e com essa coisa horrorosa que está acontecendo aqui para quem já levava a vida péssima, ela está muito horrível. Isso desencadeia uma outra coisa, mexe com o emocional das pessoas, mexe com tudo, com seus medos, seus sonhos. É tudo muito frágil. Está tendo essa corrida porque as pessoas querem levar seu melhor, tentar contribuir de algum jeito, tentar amenizar. E a arte tem essa coisa de abraçar, de levar a gente para outro lugar.

É emergencial. Muitas pessoas estão pensando se eu sei cantar, eu vou cantar, se eu gosto de ler poesia, eu vou ler poesia, levar sua boa energia, contribuir de alguma forma. É tudo muito novo.

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