Médicos sem especialidade já são 40% do total em SP
Demografia Médica do Estado traça o perfil dos profissionais e revela aumento de generalistas, jovens e mulheres; crescimento é desigual regionalmente e entre os sistemas público e privado
O grupo de médicos generalistas cresce em ritmo superior ao de especialistas, o que pode gerar gargalos no atendimento em saúde. Atualmente, são cerca de 80 mil profissionais sem título de especialista no Estado de São Paulo, correspondendo a 40% do total, um salto significativo em comparação ao ano 2000, quando representavam menos de 25%.
Os dados são da Demografia Médica do Estado de São Paulo 2026, elaborada pela Associação Paulista de Medicina (APM) em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. O estudo é um recorte estadual da pesquisa nacional Demografia Médica no Brasil.
A especialização não é obrigatória na Medicina. Os generalistas podem atuar em diversos campos, geralmente na área clínica, como em unidades básicas de saúde, em Medicina da Família e na Medicina do Trabalho. Já para ser um especialista — como cirurgião, ginecologista, dermatologista, endocrinologista, cardiologista, ortopedista, entre outros —, o caminho mais comum é fazer uma residência médica, com duração entre dois e seis anos, após a faculdade. Para entrar na residência, é preciso passar por uma prova com alta concorrência.
O crescimento do número de generalistas está relacionado, entre outros fatores, à expansão do ensino privado e à insuficiência de vagas de residência médica para todos os egressos, segundo o estudo. Nos últimos dez anos, foram abertos 40 novos cursos de Medicina em São Paulo, totalizando 87 escolas médicas em 2025. Do total de vagas disponíveis, 92% são oferecidas por escolas médicas privadas. Embora tenha havido descentralização, a Grande São Paulo ainda detém mais de 40% das vagas de graduação no Estado.
Já a oferta de residência, apesar de ter aumentado, não acompanhou o mesmo ritmo da graduação e ainda atrai muitos candidatos de outros estados —metade dos residentes em instituições paulistas são de fora de São Paulo. Há programas sediados em 57 cidades paulistas, e a concorrência cresceu de 9,6 em 2018 candidatos por vaga para 13,2 em 2025.
"Não há vagas de residência médica para todos (os egressos)", afirma o presidente da APM, Antonio José Gonçalves, em tom de preocupação.
O universo de generalistas é heterogêneo, destaca Mario Scheffer, professor da FMUSP e coordenador do estudo, que pondera que ser generalista não é, necessariamente, algo ruim. "O generalista bem formado tem papel no sistema de saúde. A grande discussão é que tivemos um 'apagão de avaliação', não sabemos a qualidade da formação desses médicos", afirma.
Ele diz que ainda há espaço para os generalistas atuarem em vagas nas quais a residência não é necessária: "Em comunidades mais vulneráveis, em postos de saúde, nos plantões... onde a população mais precisa, muitas vezes quem está atuando é o médico generalista".
"Como não haverá capacidade de formar especialistas na mesma velocidade (da formação de médicos), é preciso discutir a qualificação dos generalistas — e isso passa pela qualidade da graduação, já que tantos médicos irão, imediatamente após a formação, atender a população em locais tão estratégicos e importantes, e também por programas de educação continuada (cursos e pós-graduações)", completa.
Ao mesmo tempo, o pesquisador afirma que faltam especialistas, que poderiam, inclusive, estar na atenção primária, que hoje é ocupada majoritariamente por generalistas.
"Precisamos de mais especialistas do que temos: mais médicos da Família e da Comunidade, anestesiologistas, psiquiatras, intensivistas. E seria muito melhor que quem ocupasse a atenção primária fosse o especialista em Medicina da Família e da Comunidade, o pediatra e o ginecologista (em vez do generalista)", diz.
Áreas com mais especialistas
Segundo o estudo, entre as 55 especialidades médicas regulamentadas, sete concentram metade dos médicos especialistas de São Paulo:
- Clínica Médica
- Pediatria
- Cirurgia Geral
- Ginecologia e Obstetrícia
- Anestesiologia
- Ortopedia e Traumatologia
- Cardiologia
"Essas são especialidades ligadas ao tratamento e prevenção de grandes grupos populacionais ou situações de saúde frequentes. Muito demandadas pelo sistema de saúde e mercado de trabalho, são aquelas também com maior número de vagas em residência médica. Duas delas, Clínica Médica e Cirurgia Geral, são pré-requisitos para que o médico se torne especialista em outras especialidades", explica o levantamento.
Crescimento exponencial
Somando generalistas e especialistas, no fim de 2025 o Estado de São Paulo contará com aproximadamente 197 mil médicos, um crescimento de 67% desde 2015. O levantamento projeta um aumento ainda mais expressivo da oferta de vagas em faculdades nos próximos anos, chegando a 235 mil profissionais em São Paulo em 2030 e 340 mil em 2035 (alta de 72% na próxima década).
Se a projeção se concretizar, a razão de médicos subirá de 4 profissionais por mil habitantes em 2025 para 7 por mil em 2035. A densidade média dos países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) era de 3,9 médicos por mil habitantes em 2023.
Apenas o Distrito Federal, com 6,28 médicos por mil habitantes, supera a densidade médica de São Paulo, enquanto o Rio de Janeiro apresenta razão semelhante (4,2). São Paulo tem mais do que o dobro de médicos por mil habitantes do que os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Maranhão, Pará e Roraima.
Apesar do aumento geral de médicos projetado, a expectativa é de que a distribuição pelo Estado permanecerá desigual. Ainda mais concentrados do que os médicos em geral, mais da metade (57%) dos médicos especialistas do Estado está na Grande São Paulo e outros 10% estão na região de Campinas. Enquanto a região de Ribeirão Preto dispõe de 5,2 médicos por mil habitantes, a de Registro tem 2,1.
Mulheres e jovens: a nova "fisionomia" da medicina paulista
O perfil dos médicos em São Paulo também apresenta mudanças, de acordo com o estudo. A profissão rejuvenesceu: mais de um terço (35%) dos médicos no Estado tem 35 anos ou menos.
A área também está mais feminina. Pela primeira vez, as mulheres consolidaram-se como maioria entre os médicos formados, passando a representar 52% do total em 2025. A projeção é de que elas cheguem a dois terços (66%) dos médicos na próxima década.
Em algumas áreas de especialidade, como Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, e Medicina de Família e Comunidade, elas também já são maioria (mais de 60%), mas de forma geral ainda há mais homens especialistas do que mulheres.
"A feminização da medicina brasileira é uma conquista irreversível. Esse fato reflete o momento de transformação que vivemos, mas também impõe novos compromissos. Precisamos garantir que essa superioridade numérica venha acompanhada de equidade real em cargos de chefia, remuneração e condições de trabalho compatíveis com a realidade da mulher contemporânea", analisa a diretora da FMUSP, Eloisa Bonfá.
Houve ainda um crescimento dos médicos pretos e pardos: em nove anos, a alta foi de 8%, chegando a 12,6% do total de médicos do Estado, o que é fruto da reserva de vagas (cotas) e do financiamento estudantil, segundo o estudo.
São Paulo concentra um terço dos residentes do País
O número de residentes cresce de forma "tímida", o que faz com que a concorrência aumente e a oferta não atenda a demanda, diz Scheffer. O total de médicos residentes em São Paulo aumentou 21% em sete anos, de 12.791 em 2018 para 15.524 em 2025.
São Paulo concentra boa parte dos residentes do País: nos 1.447 programas em 202 instituições, são 15.524 médicos estudando no Estado, o que corresponde a quase um terço (31%) do total de residentes no País.
Os programas mais concorridos em São Paulo são:
- Otorrinolaringologia (54 candidatos por vaga)
- Oftalmologia (48 candidatos por vaga)
- Dermatologia (44,9 candidatos por vaga)
- Neurologia (41,4 candidatos por vaga)
- Neurocirurgia (41,3 candidatos por vaga)
O levantamento também calculou quanto tempo os médicos levam para entrar em uma residência após se formarem. Do total de médicos que ingressaram pela primeira vez em um programa, mais de 50% conseguiram a vaga imediatamente após a conclusão da graduação, até um ano depois de formados; 24% entraram até dois anos depois; 19% demoraram entre três e cinco anos; e 3% levaram mais de cinco anos.
Além da residência médica, forma escolhida por dois terços dos médicos especialistas atualmente, também é possível se tornar especialista por meio da obtenção de título concedido por uma sociedade de especialidade médica vinculada à Associação Médica Brasileira (AMB), o que requer anos de prática na área e a aprovação em uma prova de título.
Desigualdade preocupa mais que quantidade
Na visão de Scheffer, "poderá haver um excedente" de médicos no futuro. Mas o alto número de profissionais não é necessariamente um problema — pode ser positivo ou negativo a depender da distribuição regional e, principalmente, da distribuição entre os sistemas público e privado, ele diz.
"Em São Paulo, não temos regiões com falta de médicos, como acontece em outros estados. Nenhuma região tem menos de 2 médicos por mil habitantes. Mas a desigualdade entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e o sistema privado preocupa", afirma. Como exemplo, ele cita os cirurgiões paulistas: 70% trabalham simultaneamente nos setores púbico e privado, 26% atuam apenas na rede privada e menos de 7% se dedicam apenas à rede pública.
Essa preferência pela rede privada também é vista em diversas outras especialidades. Para o pesquisador, isso reduz a disponibilidade de profissionais para a parcela da população que depende exclusivamente do SUS.
As soluções, ele diz, passam por políticas de redistribuição de profissionais entre as regiões e especialidades com maior necessidade, e também para o sistema público. Como exemplos positivos Scheffer cita o programa federal Agora Tem Especialistas, com editais com salários de até R$ 20 mil para médicos especialistas atuarem nos municípios com falta de profissionais da saúde, e a Tabela SUS Paulista, do governo estadual, que paga um complemento ao valor repassado aos hospitais pelo Ministério da Saúde.