'Não se Cobre Tanto': Livro quebra mito da perfeição e mostra como viver melhor; leia trecho
Na obra, a psicóloga clínica Ellen Hendriksen cita estudos, casos famosos e sua experiência pessoal para listar mudanças de comportamento capazes de transformar a relação de uma pessoa consigo mesma
A atenção aos detalhes, a revisão cuidadosa, o esforço contínuo, todas são qualidades de um perfeccionista. É claro que a vontade de realizar o melhor trabalho possível é uma virtude, mas, muitas vezes, a pressão de tal pode ser um fardo difícil de carregar. É para isso que alerta a psicóloga clínica Ellen Hendriksen no livro Não Se Cobre Tanto. Leia um trecho abaixo.
Em seu livro, ela cita casos como o de Walt Disney - o empresário e animador ficava tão imerso e preocupado com cada detalhe de seus filmes que acabava se isolando, preso em uma bolha de frustração e exaustão. A psicóloga argumenta que esse nem sempre precisa ser o futuro de um perfeccionista.
Em Não Se Cobre Tanto, Hendriksen lista sete mudanças de comportamento capazes de transformar a relação de um indivíduo consigo mesmo, diminuindo a autocrítica, a comparação e as expectativas irreais sem abrir mão da qualidade pela qual ele está sempre em busca.
O trecho abaixo faz parte da primeira parte do livro, "O que é o perfeccionismo", e faz uma introdução ao tema e à forma como os perfeccionista veem a si mesmos.
Leia trecho de 'Não Se Cobre Tanto':
Como você decidiu ler este livro, aposto que se identifica com alguma parte dos altos padrões, da intensidade, da ética de trabalho e do compromisso de fazer as coisas bem-feitas de Walt Disney ou Fred Rogers. Para quem vê de fora, nossa vida é um lindo retrato de funcionalidade, produtividade ou de que temos a solução para tudo. As descrições são lisonjeiras: alguém que supera expectativas, está no controle, é realizado e bem-sucedido.
Mas aposto que você também se identifica com a bagunça que ficou fora do enquadramento desse lindo retrato. Eu estou com você nessa. Somos nossos piores críticos. Corresponder a nossas próprias expectativas pode ser prazeroso por um tempo; mas, como em um arroto, a sensação é muito rápida. Temos um chicote interno que nos impulsiona incansavelmente, mas também ficamos presos nas próprias versões do tamanho do dedo do Zangado ou de ansiosos fluxos de consciência quando deveríamos estar escrevendo um roteiro. Nós podemos sentir que estamos ficando para trás, que somos inadequados, excluídos ou diferentes. Por mais que nosso inspetor de qualidade interno possa garantir que façamos as coisas de forma correta, temos medo de decepcionar, de ser julgados ou criticados. Recebemos alguns rótulos dúbios: certinhos, intensos, tarefeiros, motivados, workaholics, maníacos por limpeza. Com muita frequência, nos sentimos como Walt Disney: mais solitários e isolados do que gostaríamos, com uma sensação de desconexão que objetivos e tarefas parecem nunca dissipar. Ansiamos pelo paraíso de Fred Rogers: compaixão, propósito, comunidade, pertencimento.
Não me entenda mal. O perfeccionismo nos dá alguns poderes mágicos, como padrões elevados, ética de trabalho impecável, confiabilidade e extrema consideração pelos outros. Mas, quando sai do controle, ele pode nos sujeitar a uma poderosa contracorrente de "Eu deveria fazer mais e melhor, ser mais e melhor". Pode parecer que estamos arrasando, mas nos sentimos como se estivéssemos fracassando. Para os que sofrem com o problema, perfeccionismo é um termo incorreto: não se trata de tentar ser perfeito, mas de nunca se sentir bom o bastante.
Curiosamente, no âmago do perfeccionismo há algo de fato mágico: a meticulosidade. Esse é o menos sexy dos superpoderes. O detalhismo! Nota máxima no experimento do marshmallow! Padrões máximos na primeira tentativa! Mas é a característica mais potente para uma vida boa. A Dra. Angela Duckworth, autora do livro Garra: O poder da paixão e da perseverança, e três colegas examinaram quase 10 mil norte-americanos adultos e identificaram a conscienciosidade como previsor mais consistente do sucesso tanto objetivo quanto subjetivo — já que desempenha papel em tudo, da renda à felicidade e à satisfação com a vida.
Essa característica é profundamente enraízada; a palavra remonta à década de 1600 e está ligada à consciência, nosso juízo interno de certo e errado. Significa importar-se a fundo com fazer as coisas direito, com realizar um bom trabalho, com ser uma boa pessoa. Nós nos importamos muito com aqueles que estão à nossa volta. Mas, em certo momento, a conscienciosidade pode se transformar em um perfeccionismo pouco útil.
Os pioneiros colegas da Universidade de Oxford Dra. Roz Shafran, Dra. Zafra Cooper e Dr. Christopher Fairburn* defendem que níveis clínicos de perfeccionismo inútil surgem quando ficamos insistindo apesar das consequências adversas, continuamos martelando muito depois de termos acertado o dedo. Dois elementos estão no centro do perfeccionismo clínico, e ambos me fizeram arquear as sobrancelhas em sinal de identificação.
O primeiro é um relacionamento hipercrítico consigo mesmo. Somos nossos maiores críticos. Focamos o que está dando errado, em vez do que está dando certo; o que está faltando, em vez do que é bom. Quando não alcançamos nossas altas expectativas em relação a nós mesmos, somos muito duros; mas, quando as atingimos, decidimos que elas não eram exigentes o bastante, para começo de conversa.
O segundo é a identificação excessiva com padrões pessoalmente exigentes, o que Shafran e os colegas chamam de superavaliação. Nossa própria avaliação depende de nosso desempenho. Em outras palavras, confundimos atingir (ou não) todas as nossas expectativas em relação a nós mesmos com nosso senso de Self. Se definimos "fracasso" como não atingir nossos padrões, um erro ou um defeito significam que fracassamos, mesmo que nossos padrões não sejam realistas. Exemplos clássicos incluem estudantes que se definem por suas notas, pessoas cuja autoestima depende de peso ou aparência física, usuários de redes sociais que confundem seu valor com o número de seguidores, atletas que se autoavaliam com base em seu desempenho mais recente ou qualquer um lidando com fobia social que sinta que toda interação é um referendo sobre o próprio caráter. Podemos superavaliar quase tudo: quão saudável foi nossa alimentação, quão bem lidamos com a coisa estranha que Fulano disse no trabalho, a organização de nossa casa ou quanto produzimos hoje.
Não somos perfeccionistas em relação a tudo o tempo todo; só em relação ao que nos parece importante, porque atender (ou não) a esses padrões elevados diz algo a nosso respeito. Posso ser perfeccionista sobre meu trabalho e meu comportamento social, mas não em relação ao estado de meu escritório em casa (pilhas são um método de organização, não são?).
Lembra quando eu disse que aqueles familiarizados com o perfeccionismo estão todos num mesmo grande barco? Na verdade, são três barcos. O perfeccionismo auto-orientado é quando nos cobramos demais. É a versão clássica do perfeccionismo, aquilo em que pensamos quando dizemos a palavra. Como a única pessoa que podemos mudar somos nós mesmos, permaneceremos nesse barco pela maior parte do livro.
Mas segundo os pesquisadores Gordon Flett e Paul Hewitt, existem mais dois barcos, que serão apresentados no Capítulo 5. O perfeccionismo orientado para o outro é quando cobramos demais das pessoas que nos cercam — temos expectativas excedidas em relação a nossos parceiros, filhos ou funcionários e os julgamos e/ou criticamos quando elas não são atendidas.
O terceiro barco é o perfeccionismo socialmente prescrito, que é a sensação de que os outros têm expectativas altas em relação a nós e vão nos julgar com severidade se não nos mostrarmos à altura. Se o perfeccionismo tipo auto-orientado vem de dentro, esse vem de toda parte, da sopa cultural em que vivemos: capitalismo, opressão em todas as suas formas, consumismo. Trata-se da estirpe mais tóxica de perfeccionismo. Também é aquela que cresce — sem exagero — exponencialmente. Os três tipos estão em ascensão; mas, no estudo do Dr. Thomas Curran e do Dr. Andrew Hill, a trajetória do perfeccionismo socialmente prescrito se parece menos com um aclive suave e mais com o lançamento de um foguete.
Nossas bolas de cristal mostram que a tendência deve continuar: em uma metanálise de dez estudos, Flett e Hewitt descobriram que uma em cada três crianças e adolescentes de hoje lida com alguma forma "claramente mal-adaptada" de perfeccionismo, na qual oprime a si mesma ao tentar atingir os próprios padrões, como uma bituca de cigarro esmagada sob um sapato.
E depois? Essas crianças crescem. O Dr. Martin Smith, da University of British Columbia, e seus colegas publicaram uma metanálise de anos de pesquisas sobre personalidades perfeccionistas.10 A maior descoberta? Embora muitas pessoas melhorem os sintomas com a idade, sendo menos críticas e se importando menos com o que os outros pensam, algo diferente acontece com o perfeccionista: o indivíduo entra em parafuso. Conforme vez após outra não atendemos a nossas expectativas inalcançáveis, sentimo-nos fracassados. Seguimos o caminho de Walt Disney, e não o de Fred Rogers.
Ou então chegamos à exaustão. Nas palavras de Smith e seus colegas, "em um mundo desafiador, confuso e imperfeito, os perfeccionistas podem se exaurir conforme envelhecem, tornando-se mais instáveis e menos diligentes". A vida não fica mais fácil para eles.
Uma das maneiras pelas quais esse padrão dificulta a vida é sua contribuição para os transtornos. O perfeccionismo em si não é um diagnóstico, mas uma metanálise de 284 estudos reiterou a ligação entre perfeccionismo e depressão, transtornos alimentares, fobia social, TOC e ferimentos autoinfligidos não suicidas. Ele influencia até mesmo problemas que, superficialmente, não parecem relacionados, como disfunções sexuais, variações de humor no transtorno bipolar, ataques de pânico e enxaquecas.
Uma esclarecedora metanálise de estudos diferentes foi ainda mais longe, associando o perfeccionismo ao suicídio. O Estudo de Acompanhamento de Suicídios no Alasca analisou os casos ocorridos no estado entre 2003 e 2006. Com bastante tato, os pesquisadores entrevistaram pais enlutados que haviam perdido filhos adolescentes e jovens adultos. Sem exercer qualquer influência, 62% dos pais descreveram os filhos como perfeccionistas. O dado mais alarmante? O suicídio entre perfeccionistas é súbito. Muitos disseram não ter nem ideia de que os filhos estivessem sofrendo. Os jovens promissores escondiam sua angústia de todos. Mas, internamente, sentiam tanta agonia que chegaram a ponto de acreditar que o mundo seria um lugar melhor sem eles. Tecnicamente, o perfeccionismo não é uma doença, mas pode ser fatal.
*Veremos a opinião de muitos pesquisadores respeitados neste livro, representando várias escolas de pensamento. Ironicamente, há diferentes visões sobre o perfeccionismo — se pode ou não ser útil, quantos fatores essenciais existem —, e a literatura está cheia de debates animados e refutações polidas, mas cáusticas. Em vez de fincar minha bandeira em um campo de pesquisa, como clínica e pragmática, apresentarei várias visões, enfatizando aquelas com as quais clientes e colegas clínicos se identificaram a fim de reduzir o sofrimento e melhorar vidas.
Não Se Cobre Tanto
- Autora: Ellen Hendriksen
- Tradução: Alessandra Bonrruquer
- Editora: Bestseller (350 págs.; R$59,90)