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Linn da Quebrada reforça a importância de utilizar os pronomes corretos

A participante do 'BBB 22' se autodeclara como uma pessoa travesti e é a primeira transgênero a participar do reality desde Ariadna Arantes, do 'BBB 11'

3 mar 2022 - 18h57
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Linn da Quebrada é uma travesti e se identifica pelos pronomes femininos 
Linn da Quebrada é uma travesti e se identifica pelos pronomes femininos
Foto: Instagram/@linndaquebrada / Estadão

"Por muito tempo a palavra travesti foi usada como um termo pejorativo e hoje a gente tem ressignificado este lugar, e transformado em uma identidade de poder mesmo, de empoderamento [...] A representatividade é importante e fundamental para que a gente construa um novo imaginário social". Estas são palavras de Lina Pereira dos Santos, ou como é mais conhecida, a Linn da Quebrada, que está no Big Brother Brasil 22 - a primeira travesti a participar do programa.

Antes de Lina, há 11 anos, Ariadna Arantes, do BBB 11, foi a primeira mulher trans a entrar na casa mais vigiada do Brasil. Ariadna foi a primeira eliminada daquela edição, e à sua eliminação foi atribuído o fato de, na época, a participante não ter explicitado que era uma mulher transgênero.

Lina entrou no programa pelo grupo camarote - de artistas já conhecidos do público - e aqui fora já se apresentava como uma pessoa travesti. Seus posicionamentos ajudam, em tese, o público a desconstruir a ideia do que é ser uma pessoa trans, mas, o que será que mudou na sociedade, quando tratamos de questões LGBTQ+fóbicas, desde que Ariadna foi eliminada até a participação de Lina no reality?

Para a dramaturga, roteirista, mestra e primeira doutora trans em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Danieli Balbi, nós vivemos um momento ambíguo, que representa avanço em pautas progressistas, mas, ao mesmo tempo, um crescimento no conservadorismo.

"A Lina é uma mulher que tem a sua situação de mulher transexual publicizada. Ela faz questão de construir a sua figura pública através da reafirmação do orgulho de ser uma mulher transexual [...] Eu imaginei que ao entrar na casa essa seria uma questão que ela traria para aquele espaço, num País extremamente polarizado, dividido e tensionado pelo avanço das pautas progressistas e pelo ascenso do conservadorismo reacionário. Eu soube que o palco do BBB seria uma espécie de arena política que colocaria essa questão no centro em algum momento", afirma Danieli.

A doutora ainda traça um comparativo entre o cenário que envolveu a eliminação de Ariadna, no BBB 11, e a participação de Lina no reality, 11 anos depois: "Em comparação com o que foi há mais de dez anos, é um sentido de avanço. É a certeza de que nós avançaríamos na vocalização do orgulho de ser transexuais e travestis. E sabendo que nós teríamos mais condições de resistir ao consenso conservador e transfóbico que naquele momento, quando a Ariadna participou, colocava a preservação do seu processo de construção de identidade como má fé, eu sabia também que nós teríamos muitos problemas em relação a própria afirmação da identidade de gênero no espaço da casa e fora."

E de fato esses problemas vêm ocorrendo. Lina já passou por várias situações dentro da casa envolvendo a dificuldade dos participantes em utilizar o pronome 'Ela', com o qual a participante se identifica - o que caracteriza uma situação de transfobia. Foi necessário que, ainda nas primeiras semanas, o apresentador do programa, Tadeu Schmidt, interviesse.

"Lina, você tem o pronome 'Ela' tatuado acima da sobrancelha, eu queria que você explicasse por que fez essa tatuagem e, também que você dissesse mais uma vez, reforçando, como as pessoas devem tratar você", pediu Schmidt. Em seguida, Lina explicou o motivo de ter feito a tatuagem: "Eu fiz essa tatuagem, na verdade, por causa da minha mãe. No começo da minha transição, minha mãe ainda errava e me tratava no pronome masculino. Eu falei "mãe, olha, eu vou tatuar 'Ela' aqui na minha testa pra ver se a senhora não erra". Acho também que é uma indicação para todas as outras pessoas", explicou a artista na época.

A Oficial de Programa no Fundo Internacional Trans e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Femininos, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Viviane Vergueiro, explica a importância do reconhecimento do gênero de pessoas trans e da utilização dos pronomes corretos.

"Quando se tenta banalizar parece que é uma mera questão de hipersensibilidade, formas que o patriarcado tem de desvalorizar sentimentos, percepções, e de minimizar certas violências que podem acontecer. O desrespeito aos pronomes têm uma relação muito grande com a deslegitimação dos nossos nomes, das nossas existências e perspectivas. Esses elementos têm uma fundamentação desumana que é muito profunda. Lida com formas de existência no mundo, como em passaportes, em RGs, em carteiras de trabalho, em existir em espaços educacionais, ou seja, é uma frustração que tem muita carga envolvida e a Lina, dentro dos limites que as edições [do reality] fazem, foi feliz [em se afirmar como uma pessoa travesti] apesar de toda a mágoa, indignação e peso psíquico que isso envolve ", explica a pesquisadora.

O operador de caixa, Mário Rangel, 23, diz se sentir representado por Lina no BBB 22, e que se identifica com essas questões dos erros nos pronomes, já que vive situações semelhantes: "Os vídeos que eu vi dela, eu até me identifico muito com isso. Eu sinto que ela no programa fica ainda mais chateada porque está se sentindo desrespeitada, mas ao mesmo tempo, sabe que não pode fazer uma grosseria, que não pode falar de forma mais firme porque provavelmente isso influenciaria muito em como as pessoas iriam tratar ela aqui fora. Ela está falando ali que ela não quer ser chamada dessa forma, e está todo mundo errando toda hora".

Rangel detalha melhor as situações transfóbicas que já viveu. "Eu tenho barba e tal, tenho uma passabilidade na sociedade, mas a partir do momento que eu falo que eu sou trans, as pessoas às vezes confundem, me chamam no feminino. "Ai desculpa, eu confundo". E eu logo pergunto: "Como você confunde? Você não me conheceu assim? Você está vendo minha aparência, está vendo um cara, eu falei o meu nome, como que você está confundindo? Às vezes eu acho que o preconceito da pessoa está tão enraizado que ela não consegue nem enxergar. É cômodo para você chegar e falar "desculpa, eu errei". Para você é uma vez que você errou. Agora para ela [a Lina] e para mim, quantas vezes já não erraram os nossos pronomes?", desabafa o operador de caixa.

Combate efetivo à transfobia

De acordo com o Relatório 2021 de Morte Violentas de LGBT+ no Brasil, do Grupo Gay da Bahia (GGB), no ano passado, 300 pessoas LGBTQ+ sofreram morte violenta no Brasil [], número que representa crescimento de 8% comparado a 2020. Do total, 110 casos foram de travestis e transsexuais (36,67%) e quatro casos foram de homens trans (1,33%). A associação produz o relatório a partir de dados coletados com base em notícias publicadas nos veículos do País, e realiza o estudo em parceria com a Aliança Nacional LGBTI+. No Brasil, esse levantamento não é feito de forma oficial pelo governo federal.

O GGB aponta ainda que o Brasil é o País que mais mata pessoas LGBTQ+ em todo o mundo, com uma morte a cada 29 horas. Para quebrar esse ciclo criminoso, iniciativas públicas e privadas são necessárias e urgentes, e quando a ação não parte da esfera pública, muitas pessoas não conseguem simplesmente ficar de braços cruzados. Esse é o caso da coordenadora geral do Capacitrans e ativista trans, Andréa Brazil.

A coordenadora define o Capacitrans como "um projeto liderado por uma travesti que busca mudar vida de pessoas excluídas diante de diversos recortes como raça, padrões corporais, passabilidade cis [pessoas cis são aquelas que se identificam com o sexo biológico que nasceram], limitações e deficiências, idade e tudo o que realmente exclui mais ainda pessoas trans e travestis, de espaços e oportunidades". O projeto consiste em oferecer capacitação profissional para pessoas LGBTQ+, com ênfase nas pessoas trans e travestis, em áreas como moda, produção audiovisual, maquiagem e cabelo.

"Oferecemos técnicas empreendedoras para que trans e travestis não sejam reféns das imposições do mercado da exploração sexual, nem do mercado formal de trabalho que não seja realmente acolhedor", enfatiza Andréa. A coordenadora fala ainda sobre os planos futuros para o Capacitrans. "Já tivemos mais de 200 pessoas, em nossas capacitações, em três anos, e percebemos que ao menos 20% dessa galera conseguiu ocupar espaços, trabalhos, geração de renda e ter seu próprio protagonismo. Este ano ampliamos com novos editais, conseguimos parcerias para audiovisual e almejamos a área da gastronomia."

Andréa tem acompanhado o BBB 22 e acredita que a presença de Lina está trazendo uma nova perspectiva para a sociedade do que é ser uma pessoa travesti: "Quando Ariadna entrou [no BBB 11] ainda não estávamos fortes e visíveis o suficiente, tanto que ela foi eliminada na primeira semana, já a nossa Lina travesti está chegando na metade dessa edição, graças à luta de todos os movimentos como da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), e de outras artistas trans e travestis como Renata Carvalho, Gabriela Loran, entre outras [...] Lina é inteligente, multi-artista... isso confronta a imagem que fazem de nós como marginais e violentas. Mostra que somos humanes [linguagem não-binária] e capazes. Liberta e faz pensar. A sociedade brasileira acaba vendo mesmo sem interesse uma figura que se reivindica travesti. O Brasil torcer por uma travesti é o auge para combater estigmas para a nossa população. Eu sou fã dela muito antes dessa visibilidade que ela tomou. Então, me sinto representada com orgulho".

TRAVESTI E TRANS: EXISTE DIFERENÇA?

A presença de Linn da Quebrada no BBB 22 levanta uma questão importante quando a participante do reality se declara como travesti. Muitas pessoas não sabem a diferença entre o termo travesti e trans, e se até mesmo existe alguma diferença entre as nomenclaturas. A doutora em Ciência Literária, Danieli Balbi, explica a questão.

"No caso de travestis, historicamente há uma denominação basicamente latino-americana especificamente para mulheres não cis. O termo nasce e começa a ficar mais recorrente ao longo da década de 1960, com uma carga pejorativa que era para identificar todas as mulheres não cisgêneras e de certa maneira depreciar, segregar e excluir essas mulheres.

Ao longo do tempo, com a politização do movimento LGBTQ+, o termo travesti foi sendo ressignificado. Então, quando hoje você faz questão de dizer "eu sou uma mulher travesti" você está politicamente e conscientemente recuperando a história, a memória e a cultura de mulheres travestis que foram estigmatizadas, reprimidas, violadas, vítimas de todas as violências, assassinadas, marginalizadas, e que de alguma maneira conseguiram manter a tradição dessa cultura travesti".

A pesquisadora Viviane Vergueiro concorda com a definição: "Acho que essa é uma potência que ela [a Lina] traz e nisso há a importância, inclusive, desse próprio debate dentro da comunidade trans sobre as múltiplas formas de identificação. Se travesti já foi um conceito de estigma, é um termo que hoje é potência e afirmação".

Pessoas transgênero são aquelas cuja identidade de gênero difere do sexo ao qual lhes foi atribuído no momento do nascimento. Travestis, trans, agêneros e intersexos são exemplos de pessoas consideradas transgênero.

Estadão
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