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Aplicativos de leitura ajudam na organização, mas geram ansiedade

As ferramentas podem ser usadas para estabelecer metas, acompanhar o progresso da leitura ou marcar páginas e frases

10 mar 2020 - 15h07
(atualizado às 16h31)
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Uma rápida pesquisa nas lojas de aplicativos com os termos "leitura" e "organização" mostra diversos aplicativos que prometem tornar a prática de leitura mais simples e organizada. Entretanto, apesar das facilidades, eles também demandam atenção, para evitar problemas como ansiedade e comparações.

Os aplicativos são úteis, por exemplo, para conciliar leituras que estão sendo feitas ao mesmo tempo, ou para organizar a leitura e otimizar o tempo. Eles também permitem a marcação de páginas de livros, ou sublinhar termos e salvar trechos interessantes.

Mas em que momento essas ferramentas podem prejudicar mais do que ajudar? A psicanalista Sandra Niskier Flanzer pondera, primeiramente, que esses aplicativos apresentam problemas como qualquer produto ligado à tecnologia: "como tudo que está vindo da tecnologia, com a força de algo que vem fazendo parte da vida das pessoas, existem aspectos positivos e negativos".

Ela considera que os aplicativos trazem mais conforto para o leitor, exatamente por trazer uma organização, ou dizer quanto tempo irá demorar para terminar uma obra e até, por meio de algoritmos, indicar novas leituras para os usuários.

Para Sandra, porém, a existência dos aplicativos pode ser preocupante se for considerado que "praticamente todas as atividades, inclusive as sociais e muitas das individuais são substituídas" por um certo individualismo, o que pode afetar o convívio social, já que a digitalização elimina um certo contato com a realidade.

"Que você concentre 268 livros dentro da memória do seu telefone é maravilhoso, do ponto de vista tecnológico e prático, mas é negativo ao perdermos a possibilidade de ter o livro como algo separado do corpo, algo que demanda uma interação", observa a psicanalista.

Ela comenta que tem sido observada uma dependência em relação aos aparelhos digitais e os aplicativos, o que se estende aos de leitura. No caso deles, em específico, isso pode tornar o processo de leitura mais mecânico, e diminuir o estímulo ao uso da criatividade que, geralmente, está associado à leitura.

A psicanalista considera que o ponto mais preocupante é que aplicativos como os de leitura podem gerar uma obsessão com a organização, inclusive de atividades em teoria prazerosas, como o hábito de ler um livro. "Perde-se a ideia de deixar a leitura te levar, ele [o aplicativo] é que comanda a leitura", observa Sandra.

Essa organização excessiva também pode trazer problemas psicológicos, como crises de ansiedade ou efeitos negativos a partir de comparações com pessoas que, por exemplo, cumprem as próprias metas com mais facilidades, ou são mais "eficientes" em relação ao número de livros lidos. A partir de tudo isso, a organização pode adotar um aspecto "opressor".

Outro efeito que Sandra comenta que tem sido observado na área da psicanálise é que um uso intenso de aplicativos e aparelhos digitais, em especial os celulares, têm gerado uma certa dependência, e uma grande dificuldade nas pessoas de saber quando parar o uso, se desligar e se afastar do ambiente digital.

Nesse sentido, o livro poderia servir como esse escape, uma forma de distração, mas o uso de aplicativos com métricas e progressão de leitura acaba evitando que isso ocorra. A própria pressa para terminar as atividades, como a leitura, é algo que Sandra já considera problemático, já que "velocidade não é sinônimo de eficiência".

A psicanalista pondera, porém, que apesar dos problemas, os aplicativos podem ser bastante úteis, mas demandam uma capacidade de conseguir equilibrar o uso e ter um autocontrole. Entretanto, mesmo com tudo isso Sandra considera a metrificação algo preocupante, e que deveria ser evitado.

O uso do aplicativo na prática

A consultora Tayná Leite, de 35 anos, levanta algumas questões parecidas com as de Sandra. Ela começou a usar os aplicativos de organização de leitura há mais de um ano, quando ela buscou conciliar a leitura de livros para o seu mestrado com outras obras para prazer pessoal, pouco depois de ter dado à luz seu primeiro filho.

"Eu consegui desenvolver uma disciplina e acompanhar o progresso", comenta Tayná sobre o aplicativo que utiliza. Ela considera que até teria lido livros por prazer, mas que o aplicativo permitiu que ela lesse mais, de forma mais rápida e com uma inclusão da leitura em sua rotina.

Para Tayná, o mais importante ao lidar com o aplicativo é ter um autoconhecimento, e entender que ele não será a solução para todos os problemas: "a ferramenta nunca é suficiente para nada, o aplicativo é uma ferramenta, o que tem que descobrir é o melhor método, e o sistema de prazos é um deles".

A própria Tayná, por exemplo, não conseguiu bater a meta anual de leitura que ela tinha estabelecido, mas, apesar de uma decepção inicial, ela pondera que conseguiu lidar bem com a situação, e entendeu que não havia nenhum problema em não ter conseguido atingir a meta. Isso permitiu que ela fosse mais "gentil" consigo, e não se culpasse por ter tido uma "falha".

Primeira meta literária de 2020 batida: DESAPEGAR! Eu sou a pessoa menos apegada a coisas materiais que eu mesma conheço e zero acumuladora (a não ser de memórias afetivas como cartas e diários), mas tenho (tinha!) seríssimos bloqueios para desapegar de livros. Até pra emprestar eu tenho dificuldade (até pq o histórico de devolução não é dos melhores) e eu sempre fico pensando que esse vai ser o patrimônio que vou deixar pro Cacá Pois hoje tirei tudo o que eu tenho certeza que jamais lerei de novo e que não faço questão que Cacá venha a ler um dia e PAM, saiu esse tantão ai. Esqueci de contar e como uma boa parte já foi pra nova dona, vou ficar sem saber de quantos de fato eu desapeguei, mas vamos lá: quantos likes essa guerreira merece hein... A próxima meta é comprar no máximo 10 livros novos em 2020 e focar na leitura do que eu já tenho. . ?? Rola pro lado pra ver o que separei de leituras pra 2020 de livros que eu já tenho e quero ler ou reler. O objetivo não é ler todos, pois me dei como meta 35 livros ou 9000 páginas, mas focar em não comprar e aproveitar o que já tenho. Tem muita coisa ai que eu quero reler com uma nova perspectiva e coisas que eu já nem me lembro mais, além de alguns inéditos. Mais importante de tudo é ler! Ler bem, ler com calma, ler com qualidade e absorver o conteúdo naquilo que ele conversa comigo. E tudo isso sem gerar mais acumulo e pó pela casa! E vcs? Quais são os objetivos de leitura de vcs pra este ano? . . . . . . . . #bookstagram #instabooks #leituras2020 #desapego #desapegodelivros #compremenosusemais

Uma publicação compartilhada por Tayná Leite (@_tayna_leite) em

A questão do autoconhecimento, portanto, acaba sendo essencial, até para evitar que o aplicativo acabe controlando o usuário. No primeiro sinal disso, eu já dei uma policiada. Tudo passa pelo autoconhecimento para não seguir a receita de outra pessoa e achar que vai fazer sentido na realidade", observa ela.

Para Sandra, a questão do autoconhecimento está ligada à capacidade de fazer uma reflexão, tentando entender até que o ponto um aplicativo ou outra ferramenta está ajudando e até que ponto ele está, de forma sutil, controlando o usuário e eliminando elementos importantes de uma atividade prazerosa, como ler um livro.

*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais

Estadão
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