Aplicativos de leitura ajudam na organização, mas geram ansiedade
As ferramentas podem ser usadas para estabelecer metas, acompanhar o progresso da leitura ou marcar páginas e frases
Uma rápida pesquisa nas lojas de aplicativos com os termos "leitura" e "organização" mostra diversos aplicativos que prometem tornar a prática de leitura mais simples e organizada. Entretanto, apesar das facilidades, eles também demandam atenção, para evitar problemas como ansiedade e comparações.
Os aplicativos são úteis, por exemplo, para conciliar leituras que estão sendo feitas ao mesmo tempo, ou para organizar a leitura e otimizar o tempo. Eles também permitem a marcação de páginas de livros, ou sublinhar termos e salvar trechos interessantes.
Mas em que momento essas ferramentas podem prejudicar mais do que ajudar? A psicanalista Sandra Niskier Flanzer pondera, primeiramente, que esses aplicativos apresentam problemas como qualquer produto ligado à tecnologia: "como tudo que está vindo da tecnologia, com a força de algo que vem fazendo parte da vida das pessoas, existem aspectos positivos e negativos".
Ela considera que os aplicativos trazem mais conforto para o leitor, exatamente por trazer uma organização, ou dizer quanto tempo irá demorar para terminar uma obra e até, por meio de algoritmos, indicar novas leituras para os usuários.
Para Sandra, porém, a existência dos aplicativos pode ser preocupante se for considerado que "praticamente todas as atividades, inclusive as sociais e muitas das individuais são substituídas" por um certo individualismo, o que pode afetar o convívio social, já que a digitalização elimina um certo contato com a realidade.
"Que você concentre 268 livros dentro da memória do seu telefone é maravilhoso, do ponto de vista tecnológico e prático, mas é negativo ao perdermos a possibilidade de ter o livro como algo separado do corpo, algo que demanda uma interação", observa a psicanalista.
Ela comenta que tem sido observada uma dependência em relação aos aparelhos digitais e os aplicativos, o que se estende aos de leitura. No caso deles, em específico, isso pode tornar o processo de leitura mais mecânico, e diminuir o estímulo ao uso da criatividade que, geralmente, está associado à leitura.
A psicanalista considera que o ponto mais preocupante é que aplicativos como os de leitura podem gerar uma obsessão com a organização, inclusive de atividades em teoria prazerosas, como o hábito de ler um livro. "Perde-se a ideia de deixar a leitura te levar, ele [o aplicativo] é que comanda a leitura", observa Sandra.
Essa organização excessiva também pode trazer problemas psicológicos, como crises de ansiedade ou efeitos negativos a partir de comparações com pessoas que, por exemplo, cumprem as próprias metas com mais facilidades, ou são mais "eficientes" em relação ao número de livros lidos. A partir de tudo isso, a organização pode adotar um aspecto "opressor".
Outro efeito que Sandra comenta que tem sido observado na área da psicanálise é que um uso intenso de aplicativos e aparelhos digitais, em especial os celulares, têm gerado uma certa dependência, e uma grande dificuldade nas pessoas de saber quando parar o uso, se desligar e se afastar do ambiente digital.
Nesse sentido, o livro poderia servir como esse escape, uma forma de distração, mas o uso de aplicativos com métricas e progressão de leitura acaba evitando que isso ocorra. A própria pressa para terminar as atividades, como a leitura, é algo que Sandra já considera problemático, já que "velocidade não é sinônimo de eficiência".
A psicanalista pondera, porém, que apesar dos problemas, os aplicativos podem ser bastante úteis, mas demandam uma capacidade de conseguir equilibrar o uso e ter um autocontrole. Entretanto, mesmo com tudo isso Sandra considera a metrificação algo preocupante, e que deveria ser evitado.
O uso do aplicativo na prática
A consultora Tayná Leite, de 35 anos, levanta algumas questões parecidas com as de Sandra. Ela começou a usar os aplicativos de organização de leitura há mais de um ano, quando ela buscou conciliar a leitura de livros para o seu mestrado com outras obras para prazer pessoal, pouco depois de ter dado à luz seu primeiro filho.
"Eu consegui desenvolver uma disciplina e acompanhar o progresso", comenta Tayná sobre o aplicativo que utiliza. Ela considera que até teria lido livros por prazer, mas que o aplicativo permitiu que ela lesse mais, de forma mais rápida e com uma inclusão da leitura em sua rotina.
Para Tayná, o mais importante ao lidar com o aplicativo é ter um autoconhecimento, e entender que ele não será a solução para todos os problemas: "a ferramenta nunca é suficiente para nada, o aplicativo é uma ferramenta, o que tem que descobrir é o melhor método, e o sistema de prazos é um deles".
A própria Tayná, por exemplo, não conseguiu bater a meta anual de leitura que ela tinha estabelecido, mas, apesar de uma decepção inicial, ela pondera que conseguiu lidar bem com a situação, e entendeu que não havia nenhum problema em não ter conseguido atingir a meta. Isso permitiu que ela fosse mais "gentil" consigo, e não se culpasse por ter tido uma "falha".
A questão do autoconhecimento, portanto, acaba sendo essencial, até para evitar que o aplicativo acabe controlando o usuário. No primeiro sinal disso, eu já dei uma policiada. Tudo passa pelo autoconhecimento para não seguir a receita de outra pessoa e achar que vai fazer sentido na realidade", observa ela.
Para Sandra, a questão do autoconhecimento está ligada à capacidade de fazer uma reflexão, tentando entender até que o ponto um aplicativo ou outra ferramenta está ajudando e até que ponto ele está, de forma sutil, controlando o usuário e eliminando elementos importantes de uma atividade prazerosa, como ler um livro.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais