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Com seu ativismo, Hamilton faz um grande favor à Fórmula 1

Nos últimos anos, o envolvimento do piloto inglês com temas sociais e pautas identitárias tem sido frequente; em 2020, ele subiu um tom

2 out 2020 - 22h38
(atualizado em 6/10/2020 às 14h29)
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Lewis Hamilton faz um gesto contra o racismo no pódio do GP da Grã-Bretanha.
Lewis Hamilton faz um gesto contra o racismo no pódio do GP da Grã-Bretanha.
Foto: F1 / Divulgação

Europeia, branca, masculina: a Fórmula 1 nasceu assim, em 1950, e ainda que muito precocemente tenha sido dominada pelo sul-americano Juan-Manuel Fangio, manteve-se como um campeonato centrado na Europa. Não apenas com corridas disputadas na Europa, mas com equipes do Velho Continente e predomínio de pilotos europeus. O próprio Fangio, um argentino absolutamente elegante e educado (sim, eu o conheci pessoalmente em 1992, em sua última visita ao Brasil), poderia facilmente ser tomado por um aristocrata europeu.

A prática manteve-se basicamente a mesma, durante muitas décadas: para fazer parte daquele grupo, bastava parecer-se com seus membros.

E quando, de fato, não foi assim? À burguesia faltavam os títulos da nobreza, mas sobrava dinheiro. Compraram os títulos e congraçaram alegremente com príncipes, barões e condessas. Quatrocentões falidos viram suas fazendas carcomidas pela decadência e acabaram seduzidos pelos recursos abundantes de imigrantes emergentes. Sentaram-se todos à mesma mesa na terra de Cabral.

Pilotos de Fórmula 1 protestando contra o racismo: sem Hamilton, seria impossível.
Pilotos de Fórmula 1 protestando contra o racismo: sem Hamilton, seria impossível.
Foto: F1 / Divulgação

Durante 57 anos, a Fórmula 1 seguiu esse mesmo roteiro. Depois dos cinco títulos de Fangio, venceram pilotos da Oceania, vieram os oito títulos brasileiros e a internacionalização da categoria mais e mais se acentuava com provas realizadas em países muito distantes da Europa. Mas a cara da Fórmula 1 continuava sendo europeia, branca, endinheirada e masculina. Quem entrava para o grupo não destoava desse modelo.

Até que chegou Lewis Hamilton. 

Com 22 anos, estreando por uma equipe de ponta, em suas primeiras temporadas na categoria Hamilton teve como preocupação principal ser bem-sucedido. Vice-campeão no primeiro ano, campeão no segundo. Depois, recolheu-se a papel coadjuvante enquanto Red Bull e Sebastian Vettel dominavam. 

Em 2014, com 29 anos, transfere-se para a Mercedes e torna-se multicampeão. Quanto mais ganhava nas pistas, mais se soltava fora delas. O movimento coincide com a massificação das redes sociais, e Hamilton começou a esfregar seu hedonismo na cara da sociedade. Festas, viagens, Carnaval no Caribe, corpo sarado, tatuagens em profusão, um esboço de carreira de rapper, teve de tudo. 

Aos 22 anos, Hamilton queria vencer. Aos 29, queria dizer ao mundo que tinha vencido. Ostentação? Talvez. Que outra resposta dar a um mundo tão hostil senão a comprovação de que, apesar dessa hostilidade, você venceu? Compreensível.

Hamilton pode parecer a olhos obtusos um vingador do próprio preconceito.
Hamilton pode parecer a olhos obtusos um vingador do próprio preconceito.
Foto: F1 / Divulgação

Hamilton tem 35 anos, está às portas de se tornar o maior vencedor da história da Fórmula 1. Em sua jornada de amadurecimento, começou a empunhar bandeiras ditas progressistas. Adotou o veganismo e encampou pautas identitárias. Suas postagens nas redes sociais foram migrando do exibicionismo juvenil para a militância. Fala cada vez menos da própria vida, e cada vez mais de direitos humanos, de preservação ambiental. O movimento era nítido nos anos recentes. Deixou o cabelo crescer e passou a trançá-lo à moda de diferentes etnias africanas. Quando fizeram troça dos novos penteados, deixou claro que não era moda, era afirmação racial.

O movimento que se delineava claramente nos últimos anos encontra eco nas manifestações antirracistas que eclodiram em 2020. Hamilton vai a uma delas, em Londres, de máscara no rosto e punho cerrado, qual um Pantera Negra. A temporada da Fórmula 1 começa e os pilotos (alguns – Hamilton, entre eles, naturalmente) passam a se ajoelhar na hora do hino. A Mercedes, tradicional por sua pintura prata, abraça a causa e manda para as pistas um carro pintado de preto. Os macacões de Hamilton e de seu companheiro Valtteri Bottas, pretos. No topo do capacete de Hamilton, a inscrição “Black Lives Matter” (Vidas Pretas Importam).

A cena dos pilotos juntos em protesto se tornou comum na temporada 2020.
A cena dos pilotos juntos em protesto se tornou comum na temporada 2020.
Foto: F1 / Divulgação

No mais recente Grande Prêmio, disputado na pista italiana de Mugello, Hamilton sobe um tom. Sai dos slogans e frases genéricas e pede que prendam os policiais assassinos de Breonna Taylor, norte-americana morta no estado do Kentucky, dentro de sua casa, para uma operação de busca em que nada ilegal foi encontrado. Em um primeiro momento, a Federação Internacional de Automobilismo, cuja sede fica em Paris, ameaça punir Hamilton pelo protesto, alegando quebra de protocolo na cerimônia do pódio.

Seria uma injustiça, mas seria também uma enorme estupidez. Ao chamar a atenção para o fato, no pódio em Mugello, Hamilton atraiu a atenção, para a Fórmula 1, de uma parte da sociedade que eventualmente não segue a categoria por seus atributos esportivos. Hoje, a Fórmula 1 é gerida por uma empresa norte-americana de comunicação – a Liberty Media, que certamente entendeu os benefícios do ato de Hamilton. Mais repercussão, mais visualização, mais audiência, mais clicks, mais interação etc.

Carro da Mercedes-AMG pintado de preto: mais um simbolismo contra o racismo.
Carro da Mercedes-AMG pintado de preto: mais um simbolismo contra o racismo.
Foto: Mercedes-AMG / Divulgação

Hamilton, o primeiro e até agora único piloto negro em 70 anos de história da Fórmula 1, pode parecer a olhos obtusos um vingador do próprio preconceito. No entanto, ao usar o corpo como panfleto contra o racismo e a favor de outras causas identitárias, está fazendo um favor à Fórmula 1, condenada a minguar como um título de nobreza ou uma fazenda carcomida pelo tempo se não chacoalhasse suas estruturas. No mundo globalizado, em que a diversidade é um fator crítico de sucesso para a inovação em qualquer ambiente, nem a mais antiga multinacional quer continuar sendo vista como europeia, branca e masculina.

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Siga Alessandra Alves no Twitter: @alvesalessandra

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